Praça em carne e osso – 2

Graxa e graça: História do músico-engraxate Antonio Martins, o Toninho Sertanejo

(*) Ana Carolina Castro e Karina Trevizan

Fotos: Everton Amaro

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“É no passado da escova, é no batido do pano…”. Assim canta Antonio Acássio Martins, o Toninho Sertanejo,engraxate da cadeira 24 da Praça da Sé. Aos 59 anos, acumula um invejável repertório de histórias para contar, e quem sai ganhando são os ouvintes oficiais, os clientes da graxa de “seu” Antonio. Verdade que, de tempos para cá, eles tem sido mais raros. Mesmo assim, o músico-engraxate, que já tem até CD gravado, esbanja disposição para narrar suas histórias.

Antonio Acássio Martins, o Toninho Sertanejo, 59. Músico e engraxate da Praça da Sé.
Antonio Acássio Martins, o Toninho Sertanejo, 59. Músico e engraxate da Praça da Sé.

Dezesseis engraxates dividem o espaço com Antonio na Sé. A concorrência existe, mas Antonio confia no seu trabalho. “Se o cliente de outro vier na minha cadeira, eu vou ver onde ele errou e fazer melhor”, garante. O serviço fica prejudicado apenas se alguém oferecer ao engraxate seu ponto fraco. “Eu só consigo engraxar um sapato porque eu não vi um queijo, porque quando vejo um queijo eu perco os sentidos”, confessa com a devida razão. Mineiro da cidade de Brás Pires, habitada por 2 mil cidadãos e por onde passa o rio Xopotó, tão fatídico em sua lembrança, Antonio exerce o ofício de engraxate há dezenove anos.

Para ele, isso é motivo de muito orgulho. “Foi nessa cadeira que fiz minha vida”, lembra Antonio, que não se envergonha das manchas e dos calos que os anos de graxa trouxeram-lhe às mãos. Apenas adverte a quem for cumprimentar que não fique receoso. “Fica tranquila, não mancha, não”, diz ele antes de receber a mão estendida.

Antonio deixou Brás Pires depois de fechar sua oficina de conserto de aparelhos de TV, em 1989. As televisões mais modernas, segundo Antonio, não foram feitas para ser consertadas, e sim substituídas por novas. “Quando eu vi que o barco ia afundar eu saltei antes. Foi aí que comprei minha cadeira de engraxate”, narra o mineiro, que tem saudades de sua terra natal. “Essa é a terra das oportunidades, mas meu coração está lá em Minas”, afirma Antonio depois de declamar os versos: “Sou mineiro de Brás Pires, da margem do rio Xopotó, onde eu pegava o touro à unha e com a cobra dava o nó.”

A graxa e o pano deixaram marcas permanentes na mão de Antonio.
A graxa e o pano deixaram marcas permanentes na mão de Antonio.

Perguntado de onde vem a renda do sustento familiar, Antonio explica que a cadeira 24, sozinha, não dá conta do recado. Culpando a crise global, Antonio contabiliza três ou quatro engraxadas por dia, cobrando R$ 5 por cada uma. O número já chegou a vinte clientes diários em épocas de movimento forte.

Antonio complementa o orçamento alugando os fundos de seu sobrado de oito cômodos em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, além da aposentadoria e das aulas de música (cujas apostilas ele mesmo escreveu) que ministra aos fins de semana antes de se apresentar em casas de forró. “Eu não compro nada fiado ou a prazo. Se eu for comprar uma televisão, eu junto dinheiro e compro à vista. E ainda pechincho”, explica o mineiro que ainda mantém uma casa com carro na garagem em sua terra natal, para onde volta eventualmente para tocar em eventos como a “festa da cana-de-açúcar” e a “festa do milho”. “Eu, graças a Deus, tenho uma vida boa”, comemora.

Além de fazer sapatos brilharem e render a quantia aproximada de um salário mínimo por mês, a cadeira de Antonio tem outra função. “Todos os dias eu vendo um CD aqui na cadeira”, conta Toninho Sertanejo enquanto tira do bolso furado a “carteira de músico”, que exibe com muito orgulho. “Sociedade Independente dos Compositores Musicais”, diz o documento. A gravação do CD “Toninho Sertanejo e o melhor do forró”, que precisou de seis tentativas para ficar pronto, custou ao músico-engraxate R$ 6 mil, que ele garante que pagou à vista.“Eu estou lutando para trocar a graxa pelo teclado”, diz Antonio, que tenta fazer com que seu trabalho entre no circuito comercial.

Antonio deseja trocar a graxa pela música. "Todos os dias vendo um CD aqui na cadeira", conta ele.
Antonio deseja trocar a graxa pela música. "Todos os dias vendo um CD aqui na cadeira", conta ele.

Começou cedo a lidar com a música. Encantou-se pela sanfona em sua festa de aniversário de 11 anos. “Minha mãe convidou um sanfoneiro pra a festa, e eu fiquei ao lado dele olhando”. Depois de um ano juntando o dinheiro que ganhava com a colheita de milho, comprou um instrumento. No aniversário seguinte, o mesmo músico foi convidado para a festa. “Fui pra perto dele e fiquei tentando até extrair o mesmo som. Quando o dia amanheceu, as músicas que ele tocou eu já estava tocando também”, conta o músico – engraxate que aprendeu o ofício da graxa da mesma forma, observando os outros. “Eu mostrava pra ele [outro engraxate] uma manchete de jornal, mas só pra ver o que ele estava fazendo”, zomba Antonio enquanto conta sobre seu tempo de aprendiz da graxa.

Antonio tem quatro filhos, dos quais a caçula já completou 22 anos. Casado há 36 anos, se dá ao luxo de fazer recomendações para uma união feliz. “Quem faz o sucesso de um casamento somos nós mesmos. Um tem que ter paciência com o outro”, ensina o engraxate, que usa seu próprio caso como exemplo: “Minha mulher tem problemas mentais e eu tenho que ter paciência com ela, porque eu sei que isso não está nela”.

Ao final da entrevista, Antonio autografa seu CD, “Toninho do Sertanejo e o melhor do forró”.
Ao final da entrevista, Antonio autografa seu CD, “Toninho do Sertanejo e o melhor do forró”.

Na ocasião da primeira entrevista que fizemos com ele, Beatriz da Silva Martins, a esposa, estava internada no Hospital Geral de Guaianazes por ter ingerido detergente. “Ela viu a embalagem rosa, pensou que era iogurte e ingeriu. Nós internamos ela em estado grave. Estava muito inchada, parecia que ia explodir. […] Mas a gente vai levando, né? Cada um leva sua cruz”, descreve o marido. Na segunda vez em que fomos conversar com Antonio, ele disse que Beatriz estava melhor, mas que ainda estava no hospital. O músico-engraxate se gaba do casamento feliz, e é só elogios à sua mulher: “Eu escolhi bem. E eu sou mineiro né? Mineiro dorme com um olho aberto e o outro fechado”.
E entre família, graxa e música, Antonio Martins, Toninho do Forró ou “seu” Antonio
da Praça da Sé vive sem se arrepender de nada. “Eu sou feliz, e muito feliz! Graças a deus não me falta nada. E não me arrependo de nada porque tudo o que eu fiz foi de caso pensado”, conclui enquanto limpa as mãos da graxa do último cliente, cujo sapato preto deixou cinza tudo em volta do engraxate. Só não acinzentou seu sorriso simpático de mineiro.

Clique e veja a introdução da série “Praça em carne e osso – Histórias da Sé, seus rostos e personagens”.

Clique e veja a reportagem anterior da série, que conta a história Alexandre Pedrezani, evangélico pregador da praça que já passou oito anos preso no Carandiru.