(*) Roberto Seabra –
Nestes 121 anos de história republicana, o Brasil teve 36 presidentes. Rever os discursos de posse, de Deodoro da Fonseca a Luiz Inácio Lula da Silva, é uma forma de entender a história do País.
Alguns fatos que marcaram os mandatos desses presidentes foram antecipados nos seus discursos inaugurais. Chamam a atenção também os conflitos entre discurso e prática. Nem sempre o que foi prometido coincide com o que foi feito, e nem sempre o que foi feito transparece nas palavras do discurso de posse.
A fala de Getúlio Vargas diante do Congresso, após ser escolhido presidente de forma direta, na eleição de 1950, mostra que o seu governo seria marcado pelo conflito permanente entre oposição e situação. “Os profissionais da desordem, os conspiradores impertinentes e os inimigos da paz social não encontraram ambiente propício para a aventura, o terror, a violência ou a demagogia”, discursou Vargas, em referência àqueles que tentaram evitar a sua candidatura.
Em exemplo recente, Lula antecipou em seu discurso de posse de 1º de janeiro de 2007 qual seria a viga-mestra do seu segundo mandato. “Sei que o investimento público não pode, sozinho, garantir o crescimento. Porém, ele é decisivo para estimular e mesmo ordenar o investimento privado. Essas duas colunas, articuladas, são capazes de dar grande impulso a qualquer projeto de crescimento”. E completou: “Para atingir esses objetivos, estaremos lançando, já neste primeiro mês de governo, um conjunto de medidas, englobadas no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC.
Se o PAC foi a estrela do segundo mandato, no primeiro o mote foi o combate à fome. “Como disse em meu primeiro pronunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida”, discursou ele no Congresso, em 1º de janeiro de 2003.
No mesmo discurso que lançou o PAC, Lula prometeu votar as reformas política e tributária, que acabaram emperradas no Congresso. “A reforma política deve ser prioritária. Convido todos para iniciarmos o seu debate e urgente encaminhamento, ao lado de outras reformas importantes, como a tributária, que precisamos concluir”.
Estabilidade e crise
Fernando Henrique Cardoso, ao tomar posse para o segundo mandato, em 1999, prometeu manter a estabilidade econômica, o que de fato fez, mas também garantiu que iria debelar a crise econômica surgida em 1998. “(…) Não fui eleito para ser o gerente da crise. Fui escolhido pelo povo para superá-la e para cumprir minhas promessas de campanha. Para continuar a construir uma economia estável, moderna, aberta e competitiva. Para prosseguir com firmeza na privatização”, discursou. A realidade, no entanto, mostrou que FHC precisou gastar boa parte do que construiu durante o primeiro mandato para gerenciar a crise cambial que se abateria sobre o Brasil a partir de 1999.
Em seu primeiro mandato, FHC destacou no discurso feito em 1995 que, extinta a inflação, o Brasil deveria voltar-se ao resgate da justiça social. Ele disse ainda que não temeria acabar com privilégios. Além disso, o presidente ressaltou a necessidade de abrir o País para os interesses internacionais, “sem xenofobia”. Já o seu antecessor, Itamar Franco, que assumiu o cargo em momento de crise política, logo após a renúncia de Fernando Collor, fez um discurso em que pregava a transparência total do novo governo e pedia paciência para a população, pois, segundo ele, “não serão tempos felizes, mas de sacrifício” e de “penosas preocupações”. “Este governo não terá segredos – a não ser aqueles que a segurança do País, em suas relações internacionais, assim exigir”, discursou Itamar diante do Congresso. Ele não tocou no tema do combate à inflação, que seria a tônica do seu mandato e iria garantir a eleição de FHC, candidato governista.
Militares contraditórios
Voltando ao começo da história republicana, é possível descobrir as intenções do nosso primeiro presidente pelas palavras ditas durante sua posse, que ocorreu na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O marechal Deodoro da Fonseca fez um discurso curto e direto em 16 de novembro de 1889, no qual anunciava a extinção dos cargos dos senadores vitalícios, além do fechamento do conselho de Estado e da Câmara dos Deputados. Em apenas 326 palavras, anunciou o fim da “dinastia imperial” e um “governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem”. Porém, o que se viu nos anos seguintes foi uma ditadura republicana que só acabaria com a eleição do primeiro presidente civil, Prudente de Moraes, em 1894.
Os exemplos mais gritantes de distância entre discurso e prática aconteceram durante a ditadura militar (1964-1985). Castello Branco, o primeiro presidente do regime de 1964, garantiu que o seu governo seria uma rápida transição para a democracia. “Meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações, no processo para a eleição de um brasileiro a quem entregarei o cargo em 31 de janeiro de 1966”.
Castello Branco na verdade governou até 15 de março de 1967 e entregou o cargo não a um brasileiro eleito, mas a outro marechal, Costa e Silva. Este trilhou o mesmo caminho do antecessor. Prometeu no discurso de posse “compromisso com a democracia” e “preocupação com a ordem constitucional”, mas um ano e dez meses depois baixou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que fechou o Congresso e suprimiu liberdades individuais.
O terceiro presidente militar, Emílio Garrastazu Médici, evitou fazer promessas democráticas. Preferiu apelar ao patriotismo do povo e mirar nas figuras do “homem do campo” e da “família brasileira”, lembrando sua própria origem. “Venho do campo, da fronteira, da família; venho do povo, da caserna; venho da minha terra e de meu tempo”, discursou. O que chama a atenção em Médici é um fato que antecede a própria posse.
Apesar de o seu governo ter sido marcado pela forte repressão política, ele fez questão de reabrir a Congresso, fechado pelo AI-5, apenas para realizar a sua cerimônia de posse, em 30 de outubro de 1969.
Já o quinto e último presidente militar, João Figueiredo, que completou o processo de abertura política iniciado no governo de Ernesto Geisel, antecipou em seu discurso o compromisso de restabelecer o regime democrático. “Reafirmo: é meu propósito inabalável – dentro daqueles princípios – fazer deste País uma democracia”. Mais adiante, lançou uma frase de efeito em direção aos opositores do regime: “Reafirmo o meu gesto: a mão estendida em conciliação.”
Palavras de Tancredo
Implantada a democracia, o próximo presidente, um civil, não teria a oportunidade de assumir o cargo. Tancredo Neves adoeceu na véspera da posse e o seu vice, José Sarney, leu por ele um pronunciamento feito para abrir a primeira reunião do Ministério da Nova República. Na cerimônia de posse, no Congresso, Sarney fez apenas o juramento.
O texto escrito para ser lido por Tancredo mostra a obsessão do presidente com a política econômica. “Não abrirei mão da posição de condutor da política econômica e não permitirei que o Ministério se divida em dois: os comprometidos com a austeridade e os comprometidos com os gastos”. Tancredo também defendia a reforma tributária e a proteção da poupança popular, corroída pela inflação.
Dramatacidade de Goullart e Collor
O discurso de posse mais longo e com mais propostas da história republicana foi feito pelo presidente Fernando Collor, que governaria por apenas dois anos e sete meses. Em 5.926 palavras, Collor prometeu debelar a inflação, expurgar do governo a corrupção e o empreguismo e racionalizar o serviço público. E propôs até a criação de um imposto internacional sobre poluição, antecipando a discussão sobre o aquecimento global.
No texto lido por Collor é possível também encontrar frases dramáticas, que anteciparam o comportamento de matar ou morrer que seria a marca do seu mandato. “Vencerei ou falharei na medida em que esse desafio for enfrentado, sem demora e sem tréguas”, afirmou, sobre o combate à inflação. Mais à frente, continuou: “Haveremos de ferir de morte, de destruir na fonte, a inflação no Brasil”.
Porém, certamente o discurso de posse mais dramático, até pela situação política do País, foi aquele pronunciado pelo presidente João Goulart em 8 de setembro de 1961, dias depois da renúncia de Jânio Quadros. “Surpreendido quando em missão do meu País no exterior, com a eclosão de uma crise político-militar, não vacilei um só instante quanto ao dever que me cabia cumprir”, disse, para em seguida proclamar: “Tudo fiz para não marcar com o sangue generoso do povo brasileiro o caminho que me trouxe a Brasília”.
A história se encarregou de mostrar que João Goulart permaneceria fiel ao seu discurso de posse, ao evitar, três anos depois, o caminho da violência como contraponto ao golpe de Estado desfechado em abril de 1964 pelos comandantes militares.
(*) Roberto Seabra é jornalista da Agência Câmara