Sobre Justiça e coragem

(*) Janice Agostinho Barreto Ascari –

TAKE 1. O juiz olha fixamente para o documento à sua frente. É noite, ele está sozinho e vê, ao seu redor, pilhas de processos e papéis. Tem, em mão, um pedido do Procurador e do Delegado para que determine prisões e autorize que casas e escritórios sejam revistados. São elementos colhidos em difícil e minuciosa investigação realizada nos últimos 4 anos. Em 17 anos de carreira, o juiz passou por isso muitas vezes, mas a sensação é sempre a mesma. O mundo pesa sobre suas costas e cabeça, tal a importância de seu trabalho para a cidadania. O juiz começa a análise imparcial dos graves fatos, verifica cada argumento e coteja-o com a lei. Tem a lucidez dos monges e a noção exata do que é Justiça. Não é a primeira vez que pessoas de enorme poder político e econômico cruzam o caminho do juiz, do procurador e do delegado. São banqueiros, traficantes, políticos, empresários, doleiros. Ao longo dos anos, o juiz mandou à prisão muitos deles e retirou de seus patrimônios bens e valores adquiridos com o crime, destinando-os à sociedade. Fala-se em direitos humanos, esquecem-se os deveres humanos. Depois de dias de estudo e horas insones em profunda reflexão, ele finalmente decide e redige a irretocável e consistente ordem de prisão. Invade-o a paz experimentada só pelos que têm a certeza do dever cumprido.

TAKE 2. A mostra internacional de cinema é aberta com a projeção de uma obra densa, sensível, comovente, angustiante, dilacerante. O auditório, visivelmente emocionado, aplaude de pé o diretor e sua equipe, por longos minutos. Ele não sabe qual será a avaliação, mas está em paz, seguro e consciente da boa mensagem que transmitiu. Sabe que o maior de todos os prêmios é o respeito, o reconhecimento, é ver a arte interagir de maneira indelével com a vida das pessoas. O diretor sorri, pensando em novos projetos que possam dar vazão a essa sua incorrigível vontade de mudar positivamente o mundo.

TAKE 3. A notícia das prisões explode como uma bomba e rapidamente providencia-se a libertação dos figurões. O enredo cresce em mentiras, prepotência, manipulação e covardia. Julgador e investigadores são perseguidos por cumprir fielmente seus deveres, por manter o compromisso exclusivo com a Nação. Têm arraigadas em seus espíritos a força e a pureza dos bons valores de seus antepassados. Resistem a ataques contínuos motivados por ideais obscuros. A Nação sente-se impotente, lutando contra moinhos de vento. Este mundo não presta, venha outro.

TAKE 4. Animais humanos vagueiam no caos da cidade. Cegos, degradam-se lutando pela sobrevivência com primitivos instintos predatórios e de autoproteção. Meliantes agem livremente na certeza da impunidade. É a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. Uma voz debilitada questiona onde está o Estado, omisso, que os desamparou.

TAKE 5. O diretor recebe outro prêmio. Num exemplo raro de justiça e coragem, agradece a honra e revela que reparará um lapso, repassando-o a alguém não contemplado, que não conhece pessoalmente, mas merece mais do que ele. Anuncia que entregará o prêmio ao juiz, para desespero dos que não comungam dos mesmos ideais elevados. Os aplausos ecoam cada vez mais fortes e agora se destinam a ambos. O que nos separa dos animais é a capacidade de esperança.

FINAL. A Nação se orgulha. Vê no juiz e no diretor exemplos inspiradores de independência, coragem, correção e fibra. Reaviva-se nos corações a chama transformadora. Se podes enxergar, vê. Se podes ver, repara.
(Dedicado a Fausto Martin De Sanctis, Fernando Meirelles, Rodrigo de Grandis e Protógenes Pinheiro de Queiroz, com referências livres de José de Sousa Saramago)

(*) Janice Agostinho Barreto Ascari é Procuradora Regional da República em São Paulo