Urbanista afirma que ação do Estado no planejamento das cidades favorece os grupos econômicos

“Todo mundo fala de crescimento desordenado porque a cidade aparenta ser caótica e sem controle. Mas, na verdade, essa aparente desordem é como ela se organiza, se configura de fato”, explica Luciana Ferrara ao comentar a insustentabilidade das cidades brasileiras.

Na avaliação da arquiteta e urbanista e pesquisadora, essa situação gera uma contradição: “Quando se melhora um espaço, ele se valoriza, promovendo um ciclo de expulsão das famílias mais pobres em direção as bordas. (…) Compete, nessa disputa por espaço urbano entre áreas valorizadas e infraestruturadas, um mercado imobiliário atuante, um setor que consegue adquirir e transformar esse espaço numa velocidade assustadora”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à “IHU On-Line”, Luciana comenta as políticas públicas brasileiras destinadas à habitação, especialmente o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como vê o planejamento urbano no Brasil ao longo da história do país? Quais foram os grandes impasses na área da habitação e quais são os desafios para os próximos anos?

Entendo o planejamento urbano como discurso e atuação prática do Estado, e essa forma de atuação se transformou ao longo da história. Mas uma das características que permanece até hoje é que a ação do Estado via planos, leis e investimentos favorece em grande medida grupos de maior poder econômico e político, e não a população em geral, de baixa renda, que tem dificuldade de acesso à moradia e aos serviços e equipamentos urbanos. Alterar as prioridades de ação do Estado sempre foi uma disputa política entre os diferentes agentes que atuam na produção do espaço urbano. Combater a desigualdade socioeconômica, que gera uma cidade segregadora, está para além da atividade do planejamento. Mas, se o planejamento urbano não compreender e não enfrentar essa questão de base, será difícil visualizar um melhor futuro para as cidades e para as pessoas. Em termos de elaboração de planos, houve avanços nesse campo, embora ainda haja pouca transformação na prática.

Muitos autores que estudam o urbano identificam que um marco histórico nesse sentido é a Lei de Terras, de 1850, que definiu que a forma de acesso a terra se daria por meio de compra e venda. Então, estabeleceu-se um mercado de terras que excluiu, por exemplo, os escravos libertos. A propriedade privada da terra tornou-se a medida da riqueza, que antes era a posse de escravos. É importante frisar que, quando foi promulgada essa lei, muitos latifúndios já tinham sido formados. Temos aí uma das origens da segregação socioespacial.

A partir do século XIX, com a Proclamação da República, a migração, a substituição do trabalho escravo, a industrialização incipiente constitui-se também uma elite cafeeira. Nesse momento, as intervenções urbanas tiveram forte influência de urbanistas estrangeiros e a tônica predominante era o embelezamento das cidades sob o ideário da cidade moderna. Para implementar esse tipo de intervenção, era preciso retirar os pobres dos espaços centrais.Por exemplo, o código de posturas de São Paulo (de 1886) e do Rio de Janeiro (de 1889) tinham uma postura moralizante e não aceitavam a permanência de cortiços em áreas centrais sob o argumento de que era preciso sanear e limpar a cidade.

Além disso, com o crescimento urbano acelerado, o saneamento tornou-se de fato um problema a ser enfrentado e tratado na escala urbana. Surgem grandes planos de saneamento encabeçados pelo engenheiro Saturnino de Brito em várias cidades do Brasil, como São Paulo, Santos, Recife.

Teria como adequar toda a população em áreas habitáveis e não perigosas?

Existem várias alternativas habitacionais que precisam ser implantadas em conjunto, formando uma política habitacional. Enquanto se produz um centro valorizado, produz-se, ao mesmo tempo, uma periferia precária. Uma das formas de lidar com isso é reivindicar habitação em áreas centrais, o que o movimento de moradia faz há anos, sob muita repressão. O Brasil tem um déficit habitacional tanto de demanda por novas unidades como por inadequação habitacional, ou seja, habitações que precisam de melhorias. Ao mesmo tempo, o país dispõe de uma grande quantidade de domicílios vazios. Portanto, é preciso trabalhar em diversas frentes simultaneamente; não há uma única solução. Além da construção de novos conjuntos e urbanização de favelas, existem a locação social, a recuperação de edifícios abandonados (e com dívida, que a prefeitura pode negociar), a reabilitação de cortiços, o uso misto em edifícios e exigência de construção de HIS como contrapartida de grandes empreendimentos. Enfim, existem várias formas de trabalhar dentro do tecido urbano.

Quais são os principais desafios em relação à moradia e ao planejamento urbano em uma época de mudanças climáticas e preocupações ambientais? Em que consistiria um projeto de habitação adequado, considerando-se a conjuntura atual de mudanças climáticas?

Essa questão atinge várias escalas. As mudanças climáticas tendem a aumentar os eventos extremos, o que no caso do Brasil poderá intensificar problemas que já existem há muito tempo. Na escala das cidades, das metrópoles, as chuvas intensas, por exemplo, irão afetar em maior grau as ocupações de áreas de risco ambiental, de inundação ou deslizamento, ou seja, a população que vive em áreas vulneráveis. Por isso essas ocupações demandam maior atenção do poder público, que precisa remover famílias e destiná-las a um adequado atendimento habitacional. Esse tratamento também deve abranger a expansão da ocupação sobre áreas de proteção ambiental, como as áreas de proteção aos mananciais, que precisam ser tratadas de forma abrangente integrando, de um lado, moradia e recuperação ambiental nas áreas ocupadas e, de outro, promovendo usos compatíveis com a manutenção da vegetação nas áreas ainda não ocupadas. Nós vivemos em uma sociedade de consumo exacerbado e isso se relaciona com modelos urbanos que nós adotamos. Se pensarmos na emissão de poluentes nas cidades, além das indústrias e do desmatamento, temos que enfrentar o modelo do transporte individual. O modelo rodoviarista é totalmente prejudicial, porque ele aumenta a poluição do ar, além do trânsito que interfere na mobilidade das pessoas e gera uma vida urbana bastante penosa.

Outros problemas são as formas como o solo tem sido utilizado e impermeabilizado; o mau gerenciamento da drenagem urbana; o não tratamento integral dos esgotos que geramos, fazendo com que os rios sejam canais de condução de esgotos e não espaços de fruição e de lazer para a população. Essas são questões a serem enfrentadas pela discussão da qualidade urbana e ambiental nas cidades. Elas estão na ordem do dia, e o debate sobre as mudanças climáticas faz com que a atenção à questão ambiental se intensifique. Porém, no contexto das cidades brasileiras, todas essas questões são, antes, questões sociais e precisam ser tratadas, considerando-se a noção de justiça social.

É possível pensar no planejamento de cidades sustentáveis? Que aspectos seriam fundamentais na elaboração desse projeto?

Ferrara – Nossas cidades são insustentáveis por causa de todos esses problemas que mencionei anteriormente. Portanto, pensar no planejamento de cidades sustentáveis não consiste em reivindicar projetos pontuais, por mais que reivindicar ciclovias, buscar minimizar impactos do trânsito e da poluição, etc., sejam importantes. Temos de promover uma distribuição e uso do solo urbano que seja menos predatória, ou seja, ter possibilidades de associar, nos projetos habitacionais, uma maior qualidade ambiental, em vez de fazer grandes conjuntos isolados na periferia. Além disso, os conjuntos habitacionais precisam ter qualidade ambiental, precisam ter praça, parque, equipamentos, precisam estar conectados de uma forma eficiente com meios de transporte para os centros urbanos, com os locais de trabalho das pessoas. A ideia de cidade sustentável não pode incentivar a implantação de alternativas inteligentes e interessantes concentrada em centros infraestruturados, onde já existe qualidade urbana para uma determinada parcela da população. E não deve basear-se na crença de que somente a inovação tecnológica pode nos “salvar” dos desastres ecológicos, ou que um capitalismo limpo e verde é a solução. Considero que pensar a cidade sustentável passa por uma crítica radical de como a cidade está sendo produzida hoje.