(*) Ucho Haddad –
Ser paulistano vai muito além de ter nascido na mais importante metrópole brasileira. É um estado de alma que anestesia o pensamento e alimenta os sonhos. É um ato de bravura contínuo, pois viver na sexta maior cidade do planeta não é tarefa fácil e para qualquer um. Quem sobrevive em São Paulo sobrevive em qualquer lugar da Terra, tamanho é o número de desafios que tanto os teimosos quanto os incautos enfrentam nessa selva de pedra.
Aos que decidem se instalar cidade sempre lembro que a Pauliceia Desvairada exige profissionalismo. Não importa se o aventureiro é gênio ou louco. Basta apenas e tão somente ser profissional. Do contrário, o melhor é desistir, não vir. Ou, então, venha, desfrute e vá para voltar depois.
Certa vez um forasteiro deixou Brasília rumo a São Paulo. E o fez profetizando que aqui chegando “jantaria” a cidade. Como filho da terra, esperei para ver o resultado dessa aventura que começou de forma arrogante e errada. Não porque os brasileiros que em São Paulo vivem são melhores do que os de outras partes do País, mas porque a cidade é tão implacável quanto acolhedora.
Quem por aqui chega sem avisar nem sempre recebe a senha necessária para ficar. É uma questão de sorte, de amor à primeira vista. Ou de ódio, por que não? Fato é que, amando ou odiando São Paulo, quem parte leva saudade. Muitas vezes com direito a voltar, outras com promessas de jamais retornar. Casta e profana ao mesmo tempo, São Paulo é um laboratório do impossível. Berço da razão, relva da insanidade. Propulsora de planos, guilhotina da realidade. Se desbravar a cidade é o desejo inicial da grande maioria, não sair é o sonho de consumo dos que caminham imóveis nos congestionamentos. Daqueles que param em busca do movimento da vida.
Em tempos pretéritos, sair da periferia para ir ao centro era comumente traduzido pela expressão “ir à cidade”, como se o embrião da pólis, como diziam os gregos, ainda fosse o ponto de partida para tudo, para nada, para o além. O centro de São Paulo continua guardando o marco zero dessa confusão que estreou na história nacional como São Paulo de Piratininga. De lá partem, para os mais distintos cantos, todo tipo de gente. De todos os lugares, para todos os destinos. De todas as desconfianças, de todas as crenças. Mas lá, no velho centro, se cruzam paixões, torcidas, projetos, decepções, alegrias, miséria, dinheiro. Tudo e todos com a mesma esperança: vencer nessa incansável locomotiva verde-loura, não importando em qual segmento da vida. Afinal, a vitória em São Paulo tem sabor de triunfo. Vencer em São Paulo é uma pós-graduação em sucesso.
A minha terra natal cresceu além da conta. Tornou-se a mais impossível das possibilidades, um sonho com jeito de pesadelo. Onde quer que se vá há gente de sobra, escapando pelo ladrão. Sob a luz do dia ou sob a penumbra da noite. Constantemente frenética, a cidade não se dá o sacro direito do sono, nem permite aos seus um reles cochilo. Nas esquinas e nos botecos os frequentadores do cotidiano ressuscitam para o dia seguinte. Discutem problemas crônicos, balbuciam soluções inviáveis. Fazem planos, ignoram contas. Perdem o rebolado, ganham o direito ao amanhã. Encontram o amor dos sonhos, se entregam à paixão da vida. Dragados pelo contraponto do inesperado, traçam a bissetriz do futuro.
Por diversas vezes disse adeus à minha cidade, outras tantas entoei “aqui me tens de regresso”, como cantou Nelson Gonçalves em “Boemia”. De volta estou há mais de dez anos, mas na gaveta sempre guardo um plano de fuga. O gigantismo de São Paulo assusta no primeiro momento, mas em outros pode ser o passaporte para o inimaginável. Em Sampa tudo acontece, tudo se encontra. O sonho vira realidade, o fato já nasce ato.
Desafinada, São Paulo é a melhor das sinfonias. Partitura da utopia, a cidade soa como refrão do futuro. Quem chega comprou felicidade, quem parte conheceu a realidade. Não sei se fico de vez, não sei se vou mais uma vez. Certeza só mesmo da volta, de mais uma volta. Que pode ser logo, que pode ser nunca. Que pode ser, que pode não ser. Que pode, que não pode. Se for será para voltar um dia. Voltar de novo, voltar para o novo. Voltar para, como um dos novos baianos, poder te curtir numa boa. Afinal, esse avesso do avesso do avesso do avesso é a minha mais completa tradução. Sampa!