Se não é minha, não é de ninguém

(*) Luiz Flávio Gomes –

Eloá, Daniela Peres, Mércia Nakashima, Eliza Samúdio, Sandra Gomide, Eliana de Gramont, Cláudia Lessin Rodrigues e outras quatro mulheres são assassinadas diariamente no Brasil. Dos 51.434 homicídios contabilizados em 2009 (Datasus), 8,3% ou 4.260 mortes atingiram mulheres. A cada dia, 11 mulheres são eliminadas. Cerca de setenta por cento (70%) por seu marido ou ex-marido, noivo ou ex-noivo, namorado ou ex-namorado (é aqui que reside a violência machista ou violência de gênero, que é universal).

Nossa “fábrica” de violência (Holding Brasil de Violência) continua ostentando uma “produtividade mortífera” impressionante, inclusive mundialmente (20ª no ranking mundial). Entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres foram mortas: 10 por dia, perto de 4 assassinatos para cada 100 mil habitantes, conforme o estudo Mapa da Violência no Brasil 2010, do Instituto Sangari (O Estado de S. Paulo de 04.07.10, p. C6). A cada duas horas e meia uma mulher é morta no país!

Mais da metade dos municípios brasileiros (quase 52%) não registrou nenhum assassinato de mulher nos últimos cinco anos. São “seções” (da nossa “fábrica”) temporariamente fora de ação. Mas em qualquer momento o cenário muda. A questão é só de tempo e de oportunidade. Por quê? Porque “Quanto mais machista a cultura local, maior tende a ser a violência contra a mulher” (Paula Prates, psicóloga).

Esse quadro de “produtividade mortífera” na área da violência machista poderia ser pior, tendo em vista que a cada vinte segundos uma mulher é agredida no nosso país. Um terço delas já foram fisicamente agredidas. Numa pesquisa de 2006 (Instituto PatríciaGalvão) perguntou-se se o homem podia agredir “sua” mulher? 16% responderam afirmativamente, ou seja, 16% crê no “direito” de correção do marido. A mulher deve suportar esse violência? 11% disseram sim. Ruim com ele, pior sem ele (20%).

Os números mostram o quanto essa “seção” da nossa holding de violência doméstica ainda pode progredir. Amartya Sen, que é catedrático de filosofia e economia na Universidade de Harvard e prêmio nobel de economia em 1998, no seu livro “La idea de la justicia” (tradução de Hernando Valencia Villa, Madrid: Taurus, 2010), afirma que se não podemos conseguir uma justiça perfeita, ao menos deveríamos lutar contra algumas das injustiças mais gritantes, destacando-se a violência de gênero.

A gravidade dessa questão estimulou a criação da ONU-Mulheres (Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres). Por quê? Porque na Arábia Saudita metade da população (a feminina) vive sob livramento condicional: as mulheres não podem conduzir veículos nem viajar ou sair de casa sozinhas, desacompanhadas de um varão da família; 599 mulheres foram assassinadas na Espanha, desde 01.01.2003. No Brasil, na década de 2000 a 2009, cerca de 30 mil mulheres foram vítimas de homicídio em razão do gênero. A praga da violência está presente no mundo todo.

Tudo se passa como se fosse um direito “nato” dos homens massacrar as mulheres (como Lindemberg fez com Eloá), que continuam muitas vezes em posição de desigualdade e de submissão. Não podemos nunca deixar de denunciar diariamente a barbaridade da violência, que está impregnada na cultura de todos os povos (em maior ou menor medida). Essa é uma área em que a “civilização dos costumes” (Norbert Elias) ainda não chegou (ou ainda não chegou na dosagem certa).

(*) Luiz Flávio Gomes é jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).