(*) Ucho Haddad –
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, muita gente resolveu cumprir tabela e escrever mensagens que não traduzem de maneira fiel o próprio pensamento. Amanhã, dia 9, muitos dos que escreveram coisas elogiosas e elogiadas, quiçá não copiaram de alguém, já não se lembrarão das mulheres que homenagearam. Não importa quem sejam, mas, sim, que foram politicamente corretos. Elas, as mulheres, cairão no buraco negro do cotidiano, apenas e tão somente porque assim é a sequência da vida dos pouco inventivos. Sorte da mulher que é homenageada diariamente na alma e no pensamento de alguém. Essa não precisa de textos e salamaleques de ocasião.
Caminhando debaixo de um sol chato, com lenço e com documento, decidi que hoje fugiria à regra e dedicaria palavras a um substantivo feminino. O que não significa que inexistam em minha vida mulheres a serem homenageadas diuturnamente. Até porque, quem nasce tem mãe, quem tem filha já teve uma mulher e terá outra para sempre, quem se apaixona tem um amor. E a minha homenageada é a liberdade.
Pode parecer estranho alguém homenagear a liberdade, mas para tudo na vida há uma explicação. Sob a ótica filosófica, em interpretação negativa, liberdade significa ausência de submissão, de servidão, algo a que as mulheres se submeteram durante décadas a fio. O que hoje pode ser classificado como burrice, à época era o retrato de um mundo machista e retrógrado. Na interpretação positiva, ainda na seara filosófica, liberdade representa autonomia, espontaneidade. Sem ela, a liberdade, somos nada. Só quem algum dia perdeu-a ou conquistou-a sabe o seu valor.
Homenagear a liberdade significa reconhecer a importância de algo conquistado a duras penas pelas mulheres. E foi exatamente essa luta pela liberdade que serviu de embrião para transformar 8 de março em dia dedicado mundialmente às mulheres. Se por um lado dedico tais palavras às que conquistaram a liberdade na forma abstrata, por outro rendo-me às que por um destino da vida viram o lado concreto da liberdade se esvair, sempre mantendo na mira aquilo que é mais casto a qualquer uma. A liberdade como substantivo, a liberdade como mulher.
Muitos podem estar se perguntado o que de fato me levou a escolher a liberdade neste Dia Internacional da Mulher. Um recuo no tempo e uma parada na minha própria história é que me levaram a isso. Há anos, filosofando no pequeno espaço que transformei em uma espécie de “bunker” literário, criei um projeto interessante: “Sonhos Gigantes, Mínimos Espaços – O resgate da dignidade feminina do cárcere através do uso da palavra”. A ideia surgiu da necessidade de compreender o mundo feminino entre as muralhas de uma prisão.
Tão convicto estava a respeito da importância daquele projeto, que do sonho à realidade o caminho foi muito mais curto do que muitos imaginavam. De um amontoado de papel fui transportado para a extinta Penitenciária Feminina do Tatuapé, na Zona Leste da cidade de São Paulo. O conceito desfiado no projeto foi abafado pelo som do portão de ferro que se trancou às minhas costas. Aquele barulho ainda ecoa na memória. Muralhas me acompanharam durante alguns minutos no caminho que parecia sem fim. Alambrados me fitavam o tempo todo, lembrando que naquele lugar a liberdade era o objeto do desejo de todas.
Um novo portão de ferro, mais um roncar de cadeados. Estava eu dentro do presídio, disposto a descobrir o que se passava na mente das mulheres que lá estavam e ajudá-las a recuperar a dignidade perdida ao longo dos anos. Ao saber que uma detenta, que tentara o suicídio dias antes, desistiu da ideia apenas porque soube que um projeto voltado à mulher seria implantado naquela unidade prisional, chorei. Chorei calado e para dentro, pois estava diante de um sisudo diretor que passava a impressão de poucos amigos.
Vencido mais um portão, que se fechou rapidamente após a minha passagem, cheguei ao local onde se aglomeravam perto de seiscentas presas. Quem não conhece o interior de um presídio jamais alcançará o significado desse universo de reclusão. Um espaço com seiscentas mulheres que tiveram a liberdade cerceada tem seu significado fisiológico: é a oportunidade de se deparar diariamente com pelo menos cem manifestações distintas de tensão pré-menstrual. Para ser menos trágico, um barril de pólvora com saia, pronto para explodir a qualquer momento.
Alguns dizem que a vida é madrasta, mas dela nada tenho do que reclamar, como disse certa feita o genial Paulo Brossard, ex-ministro do STF. Estar no meio de seiscentas mulheres naquelas condições foi uma das mais ricas e inesquecíveis experiências de vida. O tempo passou e comecei a compreender o que se passava naquele recinto tão assustador. O cenário passou a ser familiar. Lá estava duas vezes por semana. A cada dia surgiam histórias novas, estórias criativas, sonhos represados, desejos reprimidos. Surgiam casos, sumiam causos. Chegavam muitas, despediam-se poucas.
Nos dois anos em que lá estive semanalmente, entre muralhas sisudas e um cipoal de condenações alheias, aprendi muito mais do que ensinei. Vi muitas saírem pela porta da frente, com o alvará de soltura debaixo do braço e o sonho do recomeço no pensamento. Encaminhei algumas dessas novas cidadãs, pois essa era a minha missão. Resgatar a dignidade feminina e prepará-las para a retomada do convívio social. Aquelas tantas dúzias de mulheres, que a mim proporcionaram momentos de intensa reflexão e emoção inenarrável, me fizeram um ser humano melhor. Elas me presentearam com um jeito novo e diferente de enxergar o mundo. Foi como se tivesse nascido de novo.
Liberdade e mulher são para mim palavras sinônimas, irmãs gêmeas, quase siamesas. Conceitos que se confundem no concreto, desejos que se encontram no abstrato. Completam-se, dependem uma da outra.
Focado em cada uma daquelas mulheres enclausuradas que conheci intramuros e que jamais perderam a esperança, o pensamento, de hoje e sempre, se traduz em precisa frase de Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.