A opinião pública erra ao cobrar da Justiça decisões distintas para crimes semelhantes

Muito cuidado – Uma sociedade democrática só avança de forma plena e altiva quando prevalece o Estado de Direito, que, segundo o procurador Telmo Lemos Filho, do Rio Grande do Sul, é “aquele que impõe a todos os cidadãos, sejam administrados ou administradores, o respeito à lei, tomada esta em seu amplo espectro, da norma de maior hierarquia, a Constituição Federal, àquela de menor força normativa”. De tal modo faz-se necessário concluir com o devido destaque que o respeito ao conjunto legal norteia a existência de uma nação justa.

Com base nesse princípio, o do Estado de Direito, é preciso que nas questões legais prevaleça o bom e justo entendimento das leis, não existindo espaço para a ingerência da opinião pública nas decisões judiciais. Esse tipo de situação, que atenta contra o entendimento legal, ocorre no vácuo do sensacionalismo recorrente que marca a atuação da imprensa, sempre ávida por escândalos e casos polêmicos. Erra sobremaneira a sociedade que cobra justiça na esteira de opiniões midiáticas, costumeiramente lançadas ao vento a partir de julgamentos precipitados, sem qualquer teor técnico e ao largo da interpretação da lei.

Compreender esse tipo de comportamento em todas as suas filigranas exigiria uma análise profunda de um sem fim de teorias sociológicas, pois ultrapassa o incompreensível a volúpia do ser humano em consumir tragédias ocorridas com seu semelhante. Tal comportamento, de chofre, funciona como anestésico de ocasião para as mazelas existentes na vida de quem é mero espectador da desgraça alheia. Amparado nessa realidade, os veículos de comunicação passaram a enxergar na pauta “policialesca” uma incansável fonte de recursos, uma vez que pontos de audiência representam dinheiro no caixa.

Dupla interpretação da lei

O preâmbulo acima serve para mostrar que fatos semelhantes são interpretados de formas distintas, especialmente quando entra em ação o viés sensacionalista da imprensa. E como base o ucho.info toma uma matéria publicada pelo jornal “Folha de S. Paulo” na edição de segunda-feira (23).

Em 22 de julho de 2011, o jovem Vitor Gurman, 24 anos, foi atropelado enquanto caminhava na calçada de uma rua do bairro de Pinheiros, na Zona Oeste da capital paulista. De acordo com a polícia, a motorista do veículo, um Land Rover, estava alcoolizada e dirigia em velocidade acima do limite permitido no local (30 km/h). Internado, Vitor não resistiu e morreu seis dias depois do acidente cometido pela nutricionista Gabriella Guerrero.

A família Gurmanm luta na Justiça e quer a prisão da condutora do veículo. Por outro lado, o criminalista José Luiz de Oliveira Lima – advogado de estrelas da política nacional, como José Dirceu –, que defende Gabriella Guerrero, diz que trata-se de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. “Ela não agiu com vontade de matar Vitor Gurman. Infelizmente foi uma tragédia que atingiu as duas famílias”, declarou Oliveira Lima à Folha.

Em outro caso a interpretação preliminar da lei segue por outro caminho, provavelmente porque alguém quis que assim fosse. Em 10 de julho de 2011, o advogado Marcelo Malvio Alves de Lima dirigia o seu Porsche, em São Paulo, acima do limite de velocidade permitido, quando se envolveu em um acidente automobilístico que culminou com a morte da condutora do outro veículo.

Carolina Menezes Cintra Santos, nascida em Salvador e também advogada, dirigia o seu carro quando ignorou o sinal vermelho e foi atingida pelo Porsche de Marcelo Malvio. De acordo com a polícia, Carolina Menezes, que trabalhava em um conhecido escritório de advocacia de São Paulo, estava alcoolizada. Ao contrário do entendimento dado ao caso destacado anteriormente (Vitor Gurman), a família de Carolina Menezes contesta a tese defendida pelos advogados de Malvio.

É preciso criar um padrão interpretativo, sem pasteurizar as decisões judiciais. Para criar um ordenamento de interpretação passamos ao que determina a legislação. Dirigir alcoolizado é crime sujeito à detenção, mesmo que o motorista não provoque risco a outras pessoas. O entendimento está em decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que reafirmou, em setembro de 2011, a validade da lei que tornou crime, em 2008, o ato de dirigir alcoolizado. Nesse caso, a vítima cometeu um crime. Em relação a ultrapassar o farol vermelho, trata-se de infração gravíssima, com aplicação de multa e 7 pontos na Carteira Nacional de Habilitação. De tal modo, a vítima desrespeitou o que estabelece o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503 de 23 de Setembro de 1997), que em seu Artigo 208 assim define: “Avançar o sinal vermelho do semáforo ou o de parada obrigatória – Infração gravíssima; Penalidade – multa”.

No caso do motorista do Porsche, a infração decorre do desrespeito à velocidade máxima permitida no local. De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, o motorista que trafegar com velocidade até 20% acima do permitido receberá multa no valor equivalente a R$ 85,13. Quem exceder entre 20% e 50% o limite da via receberá multa de R$ 127,69. Os casos com velocidade acima de 50% do permitido na via são considerados gravíssimos, com aplicação de multa de R$ 574,62 está prevista a perda de 7 pontos na CNH.

De acordo com laudo do Instituto de Criminalística, Marcelo Malvio trafegava a 116 km/h, mas seus advogados alegam na defesa que a velocidade do veículo era ligeiramente superior aos 60 km/h permitidos no local.

No cômputo geral, sem de forma alguma querer banalizar a morte de um ser humano, o erro maior no caso do Porsche foi da advogada Carolina Menezes Cintra Santos, pois dirigir sob o efeito de bebida alcoólica é crime previsto em lei, ao passo que excesso de velocidade e desrespeito ao sinal vermelho são infrações graves. Para que não pairem dúvidas interpretativas, o ucho.info traz a definição de infração, segundo o conceituado dicionário Houaiss: “ato de praticar qualquer ilícito penal”. Ainda dirimindo eventuais dúvidas, ilícito é aquilo que não é legal, mas que não necessariamente configura crime. No contraponto, crime, segundo o mesmo dicionário, é “transgressão imputável da lei penal por dolo ou culpa”.

Tradição na imparcialidade

Desde a sua estreia na rede mundial de computadores, o ucho.info, assim como o sítio eletrônico precursor (ucho.com.br), sempre foi justo na interpretação da lei e das decisões judiciais. Em relação a esse padrão quase intransigente de jornalismo, citamos como exemplo o caso da Lei da Ficha Limpa. Por ocasião da sua apresentação na Câmara dos Deputados, o editor do site alertou os idealizadores da tal lei sobre a possibilidade de questionamentos judiciais no âmbito de sua inconstitucionalidade. E foi exatamente o que ocorreu, O STF recebeu inúmeros questionamentos sobre o tema. Não se trata de defender os políticos classificados como “fichas sujas”, mas de preservar o que determina a Constituição Federal em relação à presunção de inocência. Destaca a Carta Magna que só serão considerados culpados aqueles cujas sentenças condenatórias transitarem em julgado. OU seja, a partir do momento que for vencida a última instância recursal.

A Lei da Ficha Limpa foi validada pelo Supremo Tribunal Federal, depois de meses de acaloradas discussões, mas a decisão foi eminentemente política e atendeu ao anseio da sociedade, que em sua extensa maioria é leiga em termos jurídicos.

Outro exemplo a ser citado é a própria lei que definiu como crime o ato de dirigir alcoolizado. A exigência do exame do bafômetro acabou por derrubar a citada lei, pois também a Constituição determina que ninguém é obrigado a produzir provas contra si. Sendo assim, o teste do bafômetro permaneceu ilegal, até que por uma manobra legislativa, capitaneada pelo Ministério da Justiça, ocorreu a inversão do ônus da prova. Algo que até então acontecia nos crimes de lavagem de dinheiro, cujos acusados são obrigados a provar a origem lícita dos recursos.

Mais um exemplo da nossa imparcialidade interpretativa ocorreu no caso da cassação do ex-senador Demóstenes Torres, de Goiás, acusado de envolvimento com o contraventor Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira. As provas coletadas pela Polícia Federal, no transcurso das investigações da Operação Monte Carlo, avançaram na seara da inconstitucionalidade a partir do momento que Demóstenes passou a ser monitorado. Por ter foro privilegiado, o então senador só poderia ser investigado com autorização do Supremo Tribunal Federal, o que não aconteceu. Pressionado pela opinião pública, o Supremo acabou considerando legais as provas contra o então senador.

É preciso que a sociedade brasileira compreenda o perigo que representa cobrar da Justiça decisões que ultrapassam os limites da estrita interpretação do conjunto legal do país. Ao agir dessa forma, a sociedade cria, à sombra do “achismo”, padrões de julgamento que podem levar o País a uma realidade adversa à democracia, que, por enquanto e em tese, funciona embalada por tropeços e ameaças.

Uma sociedade justa se mantém sob o sacro manto do respeito à lei (Estado de Direito), jamais à sombra do populismo midiático ou do clamor de uma massa de vilipendiados que ousa descontar nos seus semelhantes os efeitos das mazelas impostas diuturnamente pelo Estado, como um todo.