A tragédia de Connecticut e o que levou Adam Lanza a cometer a chacina

    (*) Ucho Haddad –

    O mundo parou sob o impacto da tragédia ocorrida na pequena e pacata cidade de Newtown, no estado norte-americano de Connecticut. E não poderia ser diferente. O jovem Adam Lanza, que iniciou a chacina em casa matando a própria mãe, invadiu uma escola pública próxima e descarregou as armas que levava, fazendo 26 mortos, em sua maioria crianças entre cinco e sete anos.

    O que ocorreu nos Estados Unidos é prova incontestável de que a psique humana não tem limites. Na realidade, a necessidade não tem limites. Dependo da carência da pessoa, esta pode cometer barbáries acreditando estar agindo corretamente. Foi o caso de Adam, que tinha certeza de que estava fazendo o melhor para ele. Mas é preciso que o Estado esteja atento à própria conduta de seus representantes, que aspergem sobre a sociedade referências obtusas e desconexas.

    Ninguém protagoniza uma carnificina porque é mentalmente equilibrado. O faz porque é vítima de alguma descompensação. O noticiário ianque informou que Adam era considerado brilhante e muito inteligente. Alguns dizem que todo gênio é louco, mas esse dito popular não pode ser considerado como regra. Há gênios sãos, como há loucos que não são gênios. Há também gênios loucos e loucos gênios. Só não existe louco são, pois se trata de um oximoro psiquiátrico.

    Agindo emoldurado por uma personalidade psicótica, Adam Lanza planejou com frieza e eficiência a tragédia que comoveu o planeta. Quando o lado animalesco prevalece no ser humano, na esteira do desequilíbrio psicológico, a tendência é que parta para um processo de busca daquilo que lhe falta ou de eliminação de tudo que o incomode. Por certo alguns dirão que as vítimas nada tinham a ver com o conflito existencial de Adam, mas a reação do descompensado é essa.

    Vencidas as fronteiras estadunidenses, cada pessoa teve uma interpretação distinta da tragédia. No Brasil, também comovido, saltearam declarações contra a restrição às armas, defendida pelo presidente Barack Obama. Esse é o tipo de discurso que só deve ser acionado depois de muita reflexão e com a devida dose de cuidado. É preciso, antes de qualquer opinião precipitada, conhecer em suas entranhas o cotidiano da vida nos Estados Unidos, o chamado “American Way of Life”. Sem isso é perigoso ir além da tristeza. Por conta desse detalhe, o da necessidade de se inteirar sobre o estilo de vida de um povo, considero importante o estudo, mesmo que não tão profundo, da sociologia, pois só assim consegue-se interpretar de maneira supostamente correta um fato a partir dos usos e costumes de onde o mesmo ocorreu.

    Viver nos Estados Unidos é o sonho dourado de oito entre dez habitantes do planeta, mas por lá direitos e obrigações andam sempre de mãos dadas e muito apertadas. Quem teve a oportunidade de passar um longo período nos EUA sabe que o sem fim de facilidades proporciona, de chofre, uma estranha e inovadora sensação de leveza. Às vezes até uma preguiça, talvez certa displicência quase consentida com a vida. O que não significa que os EUA estão livres de empecilhos e contradições.

    Apesar de estar a quase 100 km da maior cidade do mundo, Nova York, a pequena Newtown registrou apenas um assassinato na última década. Ou seja, a cidade que era conhecida pela tranquilidade e segurança deixou o anonimato e, de agora em diante, atravessará a história marcada pela tragédia.

    Mesmo morando em um lugar seguro, a mãe de Adam mantinha legalmente em casa, na condição de colecionadora, armas de fogo. Essa convivência próxima com armas e um comportamento mental desordenado fizeram com que Adam partisse para o crime levando rifles, pistolas e fuzil, disparando mais de uma centena de tiros com munição de grosso calibre contra todos que encontrou pela frente. Com frieza e sem remorso desde que fez a primeira vítima, matou mais de duas dúzias de pessoas. Se estivesse vivo, Adam dificilmente se arrependeria do ato insano que cometeu.

    Ele saiu de sua casa com o objetivo traçado e bem armado. A Constituição norte-americana permite ao cidadão a posse e o porte de arma, com base no direito de se defender. Em demanda judicial contra a cidade de Chicago, a Suprema Corte dos Estados Unidos reforçou ainda mais o que determina a segunda emenda da Constituição do país ao destacar, na decisão, que “a defesa pessoal é um direito fundamental”. Eis o que estabelece a segunda emenda: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido”.

    É no vácuo dessa tese constitucional, de que é permitido, se necessário, transformar a nação em uma enorme e “bem organizada” milícia, que é possível encontrar armas de fogo sendo vendidas em qualquer canto dos EUA. Em alguns estados, a apresentação da carteira de motorista é suficiente para se comprar uma arma de fogo e sair pelas ruas com a sensação de xerife do século XXI.

    Ancorada no Direito saxônico, a lei nos Estados Unidos é rígida e implacável, mas é preciso, sim, endurecê-la ainda mais e restringir o direito de se ter e portar arma de fogo, como forma de evitar novas tragédias. Como há uma conjunção de fatores que leva a esses crimes bárbaros e inexplicáveis, talvez seja melhor proibir de vez o acesso às armas. E explico os motivos.

    Os Estados Unidos são conhecidos como o país da liberdade. Ao mesmo tempo, há na mais poderosa nação do planeta uma padronização social que, em tese, deve ser seguida. Nascer nos EUA significa ter a obrigação de vencer, de ser bem sucedido, de ter uma aparência dentro dos padrões locais, a despeito do conteúdo. Não por acaso, a boneca Barbie e seu namorado, Ken, são o estereótipo dos norte-americanos bem sucedidos e realizados materialmente. Não há uma versão sequer, pelo menos até onde sei, de uma Barbie pobretona e problemática.

    Mesmo assim, lá nos EUA tudo pode, inclusive surtar e sair matando a esmo. Essa liberdade combinada com o vale-tudo é possível ser conferida no dia a dia. Um forasteiro, não acostumado com o ritmo do cotidiano local, que decide pegar o Metrô em Nova York, por exemplo, pode se deparar com um passageiro que saiu de casa sem tirar o pijama e despenteado. Isso também é considerado normal no país que é a vitrine do mundo. E não ouse achar a situação estranha e encarar com olhares o dorminhoco atrasado, pois o assunto pode acabar na polícia. Resumindo, há um padrão obsoleto institucionalizado pela sociedade, mas tudo é permitido, desde que um não incomode o outro. Quando o incômodo surge, o melhor a se fazer é ter precaução.

    Sair desta quase regra leva a consequências imprevisíveis, muitas das quais rumam na direção perigosa e imprevisível do bullying. Discriminar e excluir alguém de um determinado gueto é a receita insana para transformá-lo em um barril de pólvora pronto para explodir. Foi o que aconteceu com Adam Lanza, que descontou em pessoas inocentes sua psicose, alimentada por um modelo existencial que precisa ser revisto com urgência. Essa migração pode demorar algum tempo, pois nos EUA o consumismo faz daquele que tem um vencedor. Afinal, ele alcançou aquilo que o “bem sucedido” precisa ter para se encaixar na cartilha da hipocrisia.

    Para girar a roda do consumo é preciso alavancar o crédito. E crédito significa conta que em algum momento terá de ser paga. A inadimplência nos EUA, em tempos outros, era certeza de um turbilhão que poderia levar o cidadão à exclusão social. A crise econômica que começou em 2008, levando muita gente à bancarrota nos Estados Unidos por causa do escândalo do “subprime”, produziu uma infinidade de derrotados, que por questões de padronização saíram do modelo considerado ideal e de sucesso. A retomada da economia por lá não se dará em ritmo capaz de recuperar psicologicamente os que por um infortúnio escaparam do modelo ideal. Ou seja, há muito mais gente pronta para cometer uma nova tragédia nos EUA do que se imagina. O que faz necessário impedir o acesso às armas de fogo.

    A Constituição norte-americana, a única, é de 1787, época em que os habitantes locais precisavam se defender dos ataques decorrentes das conquistas territoriais. Conceito que prevalece até hoje, mas de maneira ligeiramente amoldada aos tempos modernos. Por causa de suas incursões imperialistas ao redor do mundo, os Estados Unidos, com o passar do tempo, foram sendo içados cada vez mais à ira de outras nações. O que explica a enorme e bilionária máquina beligerante do país.

    Em uma sociedade civil supostamente organizada, onde a democracia e a liberdade individual são a tônica, o exemplo invariavelmente vem de cima. O cidadão norte-americano acorda, liga a televisão e vê imagens de tropas de seu país invadindo o território alheio e promovendo uma matança sem precedentes, apenas porque seu governante discordou de algo que outro fizera. Sem dúvida há um punhado de facínoras espalhados pelo mundo, mas ninguém tem o direito de, sem ser atacado, partir para o ataque. Os Estados Unidos invadiram o Iraque e acabaram mandado à forca o ex-ditador Saddam Hussein, assunto que deveria ser decidido pelos iraquianos, jamais pelas autoridades estadunidenses.

    Essas atitudes beligerantes e bizarras que ocorrem sob a desculpa de que é preciso manter a hegemonia do país, e que Obama tenta reduzir sobremaneira mesmo sob críticas da direita ianque, serve como exemplo maior para o cidadão agir de modo semelhante caso algo lhe incomode ou falte. E a segunda emenda da Constituição norte-americana passa a ser um pavio curto e sempre aceso em uma terra com muitos que não compreendem existência à margem dos padrões. Não obstante, a cultura da violência nos Estados Unidos é algo avassalador, sempre presente nos jogos eletrônicos, nos quais matar é o cardápio principal. Em outras palavras, matar é a bula do cotidiano.

    Há nos Estados Unidos contradições de toda ordem, assim como acontece no Brasil. São as incorrigíveis e incompreensíveis falhas do Estado. No período em que estive nos EUA – foram quase três anos com idas e vindas – visitei algumas vezes a prisão federal de Miami, onde apurava com presos um escândalo de corrupção cometido por autoridades brasileiras e que redundou no fatídico Dossiê Cayman. Algo que sempre classifiquei como obra de ficção sobre um fato verdadeiro. Naquele período, um detento morreu de ataque cardíaco no presídio. O médico foi chamado pelas autoridades penitenciárias e a morte foi constatada, gerando-se, como de costume, um atestado de óbito. Mesmo assim, o preso foi levado do estabelecimento prisional ao serviço funerário algemado. E a razão desse extremismo tem uma explicação (sic) que, dizem, se ampara na medicina. O sujeito pode estar passando por um processo de catalepsia e voltar à vida normal em liberdade.

    Volto no tempo e relembro um registro interessante e quase apagado da história. Em épocas outras, quando ainda não se convivia com tragédias como a de Newtown, nos Estados Unidos havia uma quase obrigação de os cidadãos irem à igreja aos domingos. Uma atitude que compensaria os desmandos da semana. Pois bem, para garantir plateia, os religiosos de então, que interferiam sobejamente na vida do Estado, conseguiram determinar o fechamento das sorveterias nesse dia. Foi então que, de um jeito camuflado, surgiu o famoso Sundae, que era servido em restaurantes e lanchonetes e restaurantes como sobremesa, não como sorvete. Se para dar um drible no Senhor eles travestiram e rebatizaram o sorvete, não há muito o que reclamar. Mesmo assim, confesso que, sem muito pensar, voltaria a viver na Terra do Tio Sam.

    Com esse cenário de tantas incongruências, o que Adam Lanza cometeu embalado por sua psicose é injustificável, mas tem ao menos uma explicação.

    (*) Ucho Haddad, paulistano da gema e nascido às margens plácidas do riacho do Ipiranga, é jornalista político e investigativo, cronista esportivo, escritor e poeta.