Em meio às mensagens de Ano Novo deparo-me com o Coliseu

    (*) Ucho Haddad –

    Muitos pensarão que no momento viajo pela Itália e acabo de chegar a Roma, visitando o medieval Anfiteatro Flaviano, onde imperadores da época patrocinavam espetáculos de selvageria como forma de entreter o povo. Era o módulo circense do binômio “pão e circo”, teoria até hoje utilizada por muitos governantes para anestesiar o pensamento dos cidadãos. Mas não, estou na Pauliceia Desvairada, minha terra natal, aguardando a posse dos novos prefeitos. Como escrever é um vício incorrigível e dá vazão ao pensamento, cá estou novamente.

    Nesta época do ano é comum as pessoas fazerem uma retrospectiva da vida, reavaliarem conceitos, redefinirem planos, redesenharem sonhos. Nesse turbilhão em que se transforma a alma, o coração e a mente de cada um ainda há tempo para enviar, aos mais diletos, mensagens com bons agouros. Eu também faço isso, pois é da minha essência querer o bem dos que quero bem. Sei que a maioria age de forma idêntica.

    Em cada mensagem sempre há destaque para que o ano nascente traga paz, saúde, conciliação, luzes, bênçãos, cores e por aí vai. Também faço isso, porque só assim sei existir. Quero sempre o melhor para todos, para cada um. Eis a radiografia da minha essência durante os 365 dias do ano. Até mesmo aos adversários e inimigos desejo sorte e todos os outros salamaleques. Uma coisa é ter opiniões e filosofias distintas, outra é querer o mal do meu semelhante.

    Quem costumeiramente acompanha minha diária produção como escriba, seja em artigos, seja em matérias sobre política, sabe que sempre bato na tecla da coerência. Não se pode dizer uma coisa e fazer outra. Apesar de conhecer muitas pessoas que não sabem agir sem o amparo da incongruência. E com algumas deles até convivo, pois a minha pílula de tolerância ainda está dentro do prazo de validade. Os anos passam, a vida nos ensina e os valores mudam, arriscaria a afirmar que melhoram, amadurecem.

    Mesmo compreendendo a sequência existencial que a vida nos impõe, creio que o avanço da idade – sou um cinquentão – e os cabelos brancos me trouxeram uma “ranzinzice”. Quando retornei ao Brasil, depois de longos anos no exterior, difícil foi me acostumar com o modus vivendi verde-louro. Meus filhos cresceram e passaram a chamar a minha atenção. Às vezes me davam uma carraspana. Então deixei de me incomodar com determinadas situações do cotidiano que, segundo eles, são impossíveis de mudar. Eles têm razão, mas vez por outra saio do trilho sem me transformar em um trem desgovernado.

    Pois bem, quando estou diante de uma situação esdrúxula chego a pensar que não sou deste planeta. Não se trata de ser superior ou melhor que outro, pelo contrário, mas porque alguns fatos não entram na minha cabeça. E não é por falta de espaço, porque sou um sujeito de cabeça grande, a ponto de usar boné com a fitinha traseira fixada no primeiro ponto. Quando oro, de manhã e à noite – às vezes me pego orando no decorrer do dia – peço não apenas para mim, mas para os meus, os outros, os dos outros, todos, cada um, para o mundo. De tal modo, não posso ser um na oração e outro nas atitudes. Assim como não posso ser um quando penso e escrevo e outro quando ajo. Não posso falar uma coisa e fazer outra. Entendo que o interior e o exterior do indivíduo precisam estar em sintonia, concatenados, numa relação cartesiana.

    Agora, depois do preâmbulo, chego ao ponto. Na madrugada deste domingo, 30 de dezembro, decidi acompanhar na íntegra, pela segunda vez, uma noitada do UFC. O objetivo era tentar apagar a má impressão da primeira vez. Confesso que a violência não consta da minha cartilha de vida. Certa feita, não faz muito tempo, escrevi um artigo criticando sobremaneira a selvageria que alguns ousam chamar de esporte. Não demorou muito e acabei alvo de críticas. Mantive a convicção e, tempos depois, os meus críticos deram a mão à palmatória, no bom sentido.

    Os ponteiros do relógio já tinham vencido a marca das 2 horas da manhã quando, em Las Vegas, em cima do octógono, dois seres supostamente humanos trocavam golpes tão violentos e descabidos, que o piso do ringue ficou marcado por inúmeras e largas manchas sangue. Do rosto de um desses heróis da modernidade jorrava sangue, lembrando uma torneira aberta. Mesmo assim, a luta continuou como se fosse algo normal, que faz parte do objetivo do espetáculo. A quantidade de sangue que escorria de um dos rostos era tamanha, que tentar imobilizar o adversário tornou-se quase impossível para qualquer dos lutadores, pois ambos tornaram-se escorregadios, bagres ensaboados.

    Segui adiante no bestial programa da madrugada, acreditando que se tratava de uma exceção à regra. Anunciada a nova luta, com o sangue do combate anterior esparramado pelo chão, a cena se repetiu. Mais uma vez sangue por todos os lados, resultado de socos e pontapés no rosto, cotoveladas e joelhadas no tronco, pernadas, agarrações no pescoço, chaves de braço e de perna, além de outros tantos golpes que desconheço os nomes e não faço questão de saber. Por alguns instantes pensei que poderia estar fora da realidade, pois a cada gota de sangue que espirrava a plateia de um ginásio lotado ia ao delírio, gritava e incentivava os gladiadores. Queriam os descontrolados e insanos torcedores mais violência, mais sangue.

    Encerrado o sangrento combate, sobe ao ringue um repórter que, antes de qualquer pergunta, afirma ao vencedor que a luta fora selvagem. Foi quando percebi que não estou tão fora da realidade, “fora da casinha”, como diz uma amiga-irmã. Esse tal de UFC é uma selvageria que rende fortunas, pois o ser humano precisa se mostrar superior de alguma maneira, mesmo que descabida seja. Conta com milionários patrocínios de marcas mundialmente conhecidas, cujos responsáveis não se importam em vê-las como alimentadoras da cultura da violência, que se alastra de forma perigosa e inexplicável entre os humanos. O espetáculo de selvageria ganha glamour com a presença de celebridades, esportistas famosos, artistas, que por um punhado de dinheiro são testemunhas do que ouso chamar de crime contra a dignidade humana.

    Em uma das lutas, no minuto que separa os “rounds”, um lutador, com o rosto deformado e um dos olhos quase fechados por causa dos golpes, ouve do seu treinador palavras simplesmente absurdas. “Pense no que você passou para chegar até aqui. Você precisa vencer. Vai com o coração”, disse o destrambelhado, como se um lutador naquelas condições físicas conseguisse ouvir ou pensar. Quem age com o coração não pode subir ao ringue que, entre golpes, hematomas e sangue, logo se transforma em palco da bestialidade e da insanidade.

    Contudo, o pior estava por vir. E veio de alguém que por certo acredita ser inteligente, informado, culto, etc. e tal. Um dos narradores da peleja, contratado por renomada rede de televisão, diz, após ouvir as palavras do treinador, que o mesmo tentava incentivar o atleta apelando ao emocional. Foi quando me perguntei qual é a emoção de um confronto tão animalesco, que provoca cenas marcadas por covardia e brutalidade. O que buscam os que foram à arena de Las Vegas e desembolsaram bons tostões para ver a degradação da própria raça?

    Percebi, então, que estava diante de uma versão contemporânea do Coliseu, onde gladiadores, idolatrados por uma extensa horda de insanos que escondem a própria ignorância atrás de músculos protuberantes, se enfrentam de forma violenta por causa da dourada e criminosa cornucópia que rodeia esse esporte (sic). Em outras palavras, pelo vil metal o ser humano é capaz de tudo, inclusive de fazer jorrar o sangue alheio, de desfigurar o semelhante, de vilipendiar a si mesmo e aos próprios princípios, se é que nesse caso existem.

    Sem alternativa, conclui que não sou terráqueo, que aqui caí de paraquedas, que pensar muito faz mal ou que os outros não pensam porque dói. Cabe-me a missão de retornar ao meu planeta, onde tudo o que cabe nos votos de feliz ano novo é realidade. Antes da viagem pelas galáxias quero parar em Roma, visitar mais uma vez o Coliseu. Ir à Fontana di Trevi, virar de costas e, seguindo a tradição, arremessar um patacão qualquer na esperança de um dia retornar e encontrar pessoas que agem da mesma maneira que falam e pensam.

    Aos que chegaram até aqui, desejo que 2013 traga tudo o que escrevi mais acima. E se alguém precisar da minha humilde colaboração para que os votos, que aqui deixo, se tornem realidade, basta me chamar antes que a nave chegue para me levar. Até porque, como compôs e ainda canta Carole King, “you’ve got a friend”.