Quando o poder subterrâneo, amparado pela imprensa de aluguel, induz o Estado e a Justiça a erro

    (*) Ucho Haddad –

    Condenação por antecipação é o resultado que toda reportagem sensacionalista provoca, não sem antes arremessar sobre a sociedade uma opinião pré-formatada e tendenciosa, que muitas vezes não traduz a verdade dos fatos e acaba beneficiando o verdadeiro culpado e coloca sobre um inocente a chancela da responsabilidade que resulta do “achismo”.

    Reza a Constituição Federal brasileira que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, mas no Brasil alguns são mais iguais que os outros. Esses privilegiados (sic), que materializam um atentado contra o Estado Democrático de Direito, normalmente são integrantes do poder ou vivem na órbita do mesmo. E aproveitam esse convívio espúrio para forjar a lei a seu bel prazer.

    O exercício do jornalismo exige espírito investigador do cidadão que opta por tal profissão, mas a ele não cabe o papel de condenar, uma exclusividade da Justiça. Vale lembrar, contudo, que Judiciário é operado por seres humanos, influenciáveis e passíveis de erros. O que não configura desvio de caráter ou dá margem à suspeição.

    No momento, o País assiste o esforço da imprensa nacional para encontrar os culpados pela tragédia de Santa Maria, cidade do interior gaúcho onde 231 pessoas morreram no incêndio que consumiu uma boate. E a opinião pública está se deixando levar por aquilo que sai no noticiário. Enquanto isso, alcançada também por esse “xerifismo” midiático, a Justiça paulista caminha na direção do equívoco. Possivelmente mais um.

    Em 10 de julho de 2011, o engenheiro Marcelo Malvio Alves de Lima dirigia o seu Porsche, em um bairro da Zona Sul da cidade de São Paulo, acima do limite de velocidade permitido, quando se envolveu em um acidente automobilístico que culminou com a morte da condutora do outro veículo. Era madrugada e na via transversal surgiu um automóvel conduzido por Carolina Menezes Cintra Santos, que desrespeitou o sinal vermelho e, segundo laudo pericial, estava alcoolizada.

    Baiana de Salvador e filha de família conhecida, rica e influente, a advogada Carolina Menezes morava na capital paulista, onde trabalhava em um conhecido escritório de advocacia. Como se não bastasse, o seu rol de amizades era pontuado por poderosos e endinheirados, assíduos frequentadores do eixo Salvador-Rio-São Paulo.

    Em matérias do ucho.info, as quais levaram a minha assinatura, mostrei que o engenheiro Marcelo Malvio, logo após o acidente, foi inexplicavelmente guindado à condição de réu, quando na verdade foi vítima de alguém que cometeu uma infração de trânsito maior que a sua. Qualquer estudante de Direito que deixa a universidade e se lança no vasto e complexo universo da advocacia criminal sabe que Malvio cometeu uma transgressão de trânsito – trafegar acima da velocidade local permitida –, mas não a ponto de ser considerado culpado pela morte da advogada.

    Garante a sabedoria popular que “quem pode mais chora menos”. Essa ainda é a tônica da realidade brasileira, apesar de recentes e radicais mudanças no âmbito do Judiciário que resultaram na condenação dos mais poderosos e na decretação do fim da impunidade de um gueto de transgressores. Ainda exceção, tal cenário exigirá tempo para se tornar regra. A investigação do caso começou de forma nada ortodoxa, pois prevaleceu nos bastidores a pressão de quem detém o poder, mesmo que por meios nada republicanos, para que a advogada passasse à condição de vítima.

    De posse do inquérito policial, o Ministério Público requereu à Justiça que Marcelo Malvio Alves de Lima seja acusado por homicídio doloso, quando há a intenção de matar. “Esse crime foi praticado por motivo torpe, ou seja, o funesto desejo de Marcelo em se exibir perante as pessoas que estavam em busca de diversão no bairro do Itaim-Bibi”, escreveu o promotor Rogério Zagallo na denúncia enviada à Justiça.

    O representante do Ministério Público paulista foi além e destacou no documento, de acordo com informações da jornalista Mônica Bergamo (Folha de S. Paulo), que ”destilando naquele boêmio bairro o poder de sedução que exala de seu Porsche […] Marcelo, mesmo após ter ingerido, em comparsaria com uma mulher, uma garrafa de vinho, deliberou acelerá-lo inconsequentemente pela rua”.

    Ao contrário do que afirma o promotor, Marcelo Malvio não estava alcoolizado, conforme atestaram os médicos que o atenderam após o acidente no Hospital São Luiz, por meio de exame de sangue. De tal modo, não cabe nesse caso nem mesmo a denúncia de crime culposo, quando não há a intenção de matar.

    O Brasil vive momentos de pitorescas alternâncias de valores, pois em alguns casos os culpados são os mortos, porque esse tipo de situação interessa a alguém, em outros a culpa é dos vivos. Também porque interessa a alguém. Não porque prevalece a tese da prova inequívoca.

    Tomemos como exemplo o caso do acidente com o Airbus da TAM, ocorrido em 17 de julho de 2007, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A culpa, pelo menos por enquanto, está centrada no piloto e no co-piloto da aeronave, que juntamente com outras 197 pessoas morreram no trágico acidente. Nesse caso, inocentes mortos estão assumindo o lugar dos verdadeiros culpados.

    No caso de Marcelo Malvio a situação é inversa. A advogada Carolina Menezes, morta no acidente e sobre quem recai a culpa maior, está transferindo a responsabilidade a alguém que foi vítima, por que não afirmar que no tocante ao homicídio é inocente. E explicamos as razões.

    Ainda que passíveis de contestações, os laudos periciais atestaram que Marcelo Malvio dirigia em excesso de velocidade. Uma infração de trânsito, cuja gravidade e pena estão previstas em lei. Carolina Menezes, que ignorou o farol vermelho, também cometeu uma infração de trânsito, que também a gravidade e a pena estão externadas na lei.

    Acontece que Carolina estava alcoolizada, o que fragiliza sobremaneira sua condição de vítima, algo ignorado pelas autoridades responsáveis pelo inquérito policial e, por consequência, pelo promotor de Justiça. Para provar que a culpa maior pelo acidente maior recai sobre a advogada baiana, o Congresso Nacional recentemente aprovou o endurecimento da Lei Seca, eliminando a necessidade do uso do bafômetro para comprovar o cometimento de crime por parte do motorista alcoolizado.

    No Direito Penal não há concorrência de culpas, lembra o advogado Mário de Oliveira Filho, um dos mais experientes e conceituados criminalistas do País. O advogado destaca que a concorrência de culpas é contemplada apenas no Direito Civil. Mário de Oliveira salienta que no Direito Penal “a culpa é pessoal, personalíssima e intransferível”.

    Não me cabe defender um e condenar outro, ou vice-versa, mas cobrar a correta aplicação da lei, desde que a mesma seja interpretada em sua plenitude e abrangência, pois nesse cenário se entrincheiram as garantias do cidadão, as quais não podem ser distorcidas e vilipendiadas por determinado fato, trágico ou não.

    Diante do caso, o meu posicionamento é de imparcialidade, pois é o que manda o bom jornalismo, mas tem o objetivo claro de evitar que o Brasil, uma democracia que ainda precisa evoluir, seja transformado em catapulta de decisões judiciais acionada pela pressão exercida nos bastidores e pela manipulação da opinião pública por parte de setores da imprensa, que como vigilante do Estado falseia ao chamar para si a distorcida prerrogativa de condenar com antecedência e na esteira de interesses pontuais.