Boate Kiss: o que as famílias das vítimas podem esperar em termos de indenização

Realidade numérica – Não é a primeira vez que o ucho.info trata do assunto, mas os fatos se repetem e a obrigação dos jornalistas é esclarecer a verdade. Quanto vale uma vida? Eis a pergunta que não tem resposta, pois a vida não tem preço, mesmo que o ser humano insista em caminhar na direção da desumanidade.

Se no âmbito emocional uma vida não tem preço, no universo da realidade a calculadora entra em cena quando alguma tragédia acontece e as vítimas ou os parentes dos mortos ingressam na Justiça em busca de indenizações. É preciso muita cautela, porque no momento da dor sempre surge alguém com excesso de esperteza para oferecer o impossível, o ilegal, aquilo que jamais se consumará, mesmo com anos de briga na Justiça.

No caso do acidente ocorrido na boate Kiss, a Associação Nacional para Exigência do Cumprimento das Obrigações Legais (Anecol) entrou com ação judicial contra a prefeitura de Santa Maria, os proprietários da casa noturna e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira. A indenização pedida é de R$ 3 milhões por cada vítima fatal do incêndio e de cerca de R$ 300 mil por pessoa hospitalizada.

Por mais espantoso que possa parecer, o cálculo de uma indenização, em casos como o da Kiss, segue uma lógica matemática e fiscal, pelo menos no primeiro momento. A Justiça brasileira trabalha com a expectativa de vida do cidadão em 74 anos. Desse número subtrai-se a idade da vítima fatal. O resultado é multiplicado pelo valor que a vítima declarou à Receita Federal como ganho na última declaração do Imposto de Renda. Do subtotal auferido desconta-se 27,5%, correspondente àquilo que a vítima teria de pagar de imposto caso estivesse viva.

Essa é a regra legal que prevalece em casos de indenização a serem pagas por órgãos públicos, empresas privadas, pessoas físicas e companhias seguradoras. Isso significa que se a vítima fatal tinha o hábito de sonegar impostos e declarava ao fisco um rendimento menor do que o real, os herdeiros legais serão prejudicados. Por maior que tenha sido a tragédia e mais dolorosa que seja a perda de um ente querido, a calculadora da indenização não tem alma e nem coração, mas apenas sabe fazer contas. E revoltar-se contra essa realidade é deixar de pensar com o cérebro.

Tal situação prevaleceu na indenização às famílias das vítimas dos acidentes aéreos da Gol e da TAM, assim como prevalece em tantos outros, similares ou não. Em alguns casos, promessas feitas por advogados oportunistas e inescrupulosos levam as famílias das vítimas a sonharem com um valor que jamais será pago. Para que a irreparável dor da perda não se arraste, o melhor é ater-se à lógica e liquidar o assunto.

No caso do último acidente da TAM, por exemplo, alguns familiares chegaram a cobrar indenizações de R$ 5 milhões, mas acabaram recebendo muito menos por causa da forma como se dá o cálculo, como mencionado acima. A forma como se deu a morte não interfere no cálculo da tragédia. Isso não significa que a família não tem o direito de, em um segundo momento ou em outra ação judicial, cobrar indenização por danos morais ou por aquilo que entenda ser justo. Sempre lembrando que o percentual de sucesso corresponde ao tamanho do risco ou da ousadia da alegação.

No acidente ocorrido no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, uma das vítimas declarava integralmente à Receita Federal o salário que recebia como alto executivo de uma companhia. A empresa seguradora pediu à família para apenas ver o comprovante da última declaração do Imposto de Renda, fez os cálculos e pagou sem discussão alguma a indenização devida. De nada adianta se recusar a apresentar a declaração de Imposto de Renda da vítima, sob a alegação de se trata de quebra de sigilo fiscal, pois essa atitude apenas arrastará o caso e não aumentará o valor da indenização.

Em relação à indenização da vítima que sobreviveu e foi internada, o cálculo pode superar os R$ 300 mil pedidos pela Anecol. Em conta serão levados diversos fatores, como as sequelas provocadas pelo acidente, as despesas de internação, os custos de eventuais tratamentos posteriores, possível invalidez, além da indenização por danos morais e eventualmente materiais.

De qualquer modo, não há na iniciativa da Anecol qualquer viés de oportunismo ou má fé, mas é preciso estar ciente de como se dá o cálculo de uma indenização dessa natureza.