O que há de certo e de errado, de inusitado e de conhecido na tragédia futebolística da Bolívia

    (*) Ucho Haddad –

    A tragédia ocorrida em Oruro, na Bolívia, em que um jovem torcedor do San José, time de futebol local, morreu após ser atingido por um sinalizador náutico acionado por integrante da torcida do Corinthians, foi a salvação da imprensa brasileira nos últimos dias. De todas as maneiras o caso foi explorado, abrindo espaço para as mais distintas declarações, como se chacoalhar um balaio de conjecturas fosse sinônimo de opinião responsável.

    Antes de avançar no texto, lembro que futebol é negócio. E desse negócio bilionário a imprensa também faz parte e dele depende diuturnamente. Na verdade, a vida se transformou em um negócio de difícil compreensão, o que é lamentável e irreversível. No triste episódio boliviano, quem conseguiu tirou uma casquinha. Até o ministro do Esporte, o palmeirense Aldo Rebelo, que não consegue enxergar os absurdos que acontecem em seu próprio partido, pediu a punição dos culpados. Tempo é dinheiro, dizem os mais experientes, mas a pressa muitas vezes patrocina o prejuízo moral de alguém.

    Doze torcedores do Corinthians foram presos pela polícia boliviana e lá se encontram à disposição da Justiça. Foram indiciados por um crime que nem mesmo o chefe da torcida adversária reconheceu como tal. Não estou aqui a defender os torcedores do alvinegro paulistano e nem mesmo a desrespeitar a memória do jovem torcedor do San José e a dor de seus familiares. Apenas creio que nesse jogo de empurra-empurra é preciso considerar uma série de fatos, o que faço a seguir e por partes, sem em nenhum momento buscar inspiração no lendário Jack, o Estripador.

    Artefato mortal vendido como pipoca

    Conhecido o índice de letalidade do tal sinalizador náutico, pois afinal especialistas falaram aos bolhões sobre o assunto em diversos veículos midiáticos, o mesmo não poderia ser vendido a esmo e a desavisados, como o torcedor que foi até a Bolívia para tirar a vida de um jovem e acabar com a própria, mesmo continuando vivo. Se o artefato tem esse poder de destruição, exibido tragicamente em Oruro, quando acionado por pessoas despreparadas e a curta distância, a venda deveria ser controlada, a exemplo do que ocorre com armas de fogo e munições. Não havendo lei para tal, que os legisladores brasileiros se movimentem com a mesma celeridade que exibem quando em pauta está um assunto de interesse da categoria, que se esmera para não tê-la (a categoria). Do contrário, matar com sinalizadores náuticos acabará virando moda nesse país onde sensação de impunidade grassa em todos os quadrantes do território.

    O Brasil está prestes a realizar dois grandes eventos esportivos – a Copa das Confederações (2013) e a Copa do Mundo (2014) – e alguma medida precisa ser tomada para que tragédias se repitam e a imagem do País não saia ainda mais arranhada e desgastada após o término dessa sandice dupla e desnecessária para uma nação que dá de goleada no campo das mazelas oficiais.

    O desleixo do Estado se faz presente na fronteira

    O sinalizador náutico não foi comprado na Bolívia, segundo informações, mas levado na bagagem de um torcedor do Corinthians que foi a Oruro para empurrar o time na partida válida pela Copa Libertadores da América. Como os corintianos viajaram à Bolívia de ônibus, fica comprovada a fragilidade das fronteiras brasileiras com os países sul-americanos, assunto que tem merecido os mais variados alertas.

    No local onde deveria existir fiscalização por parte de autoridades de ambos os países, passou um sinalizador náutico, como passaria uma escopeta, um lançador de mísseis. Na verdade, armas e drogas passam livremente por quase todos os pontos da fronteira do Brasil com os países sul-americanos. Passa tudo, a todo instante. É uma questão de querer, pois a inoperância do Estado é inconteste e na maioria das vezes é proposital e tem seu preço.

    Os clubes e suas torcidas quadrilheiras

    Não é novidade alguma o convívio promíscuo entre cartolas de clubes de futebol e dirigentes de torcidas organizadas. Trata-se de um conluio criminoso e consentido, que acontece nos subterrâneos como se fosse uma versão às avessas do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. Assim como os clubes, as torcidas organizadas são negócios muito lucrativos e que servem de escudo para marginais de toda ordem, que usam a violência como ferramenta de afirmação social, como lanterna dos afogados nas águas da marginalização social.

    Concluir que esse conluio entre dirigentes de clubes e de torcidas existe é uma questão de lógica e de raciocínio contábil. Ninguém consegue movimentar um grupo de torcedores sem que haja muito dinheiro envolvido. Até porque, esses torcedores vão aqui e acolá quando deveriam estar trabalhando ou estudando. A preparação de uma torcida organizada que vai ao estádio começa muitas horas antes da partida. A dificuldade maior é provar a existência desse envolvimento, que explica a rivalidade entre torcidas do mesmo clube, que se enfrentam pela conquista dessas mordomias escusas.

    O irresponsável que era responsável pelo acusado

    De acordo com a legislação brasileira, um jovem com menos de dezoito anos só pode deixar o País sem a companhia dos pais desde que autorizado pelos mesmos, em documento com as respectivas assinaturas reconhecidas em cartório. Mesmo assim, alguém deve ser responsável pelo menor durante a viagem. Diante disso, é preciso saber quem autorizou o torcedor a viajar ou se ele saiu do País sem qualquer dificuldade e autorização. E quem assumiu a responsabilidade exigida pela lei.

    Se nada disso aconteceu, o desrespeito à lei começou de baixo e terminou nas alturas de Oruro, com um homicídio que agora envolve a Justiça de dois países. A família do torcedor que acionou o sinalizador correr o risco de perder a guarda do menor, se é que já não perdera muito tempo antes.

    A falha segurança no estádio boliviano

    Surgiram de todos os lados informações contraditórias sobre o uso de artefatos pirotécnicos em praças esportivas na Bolívia. Ora era permitido, ora era proibido. É preciso criar um consenso global a respeito do que representa perigo e coloca a vida de uma pessoa em risco. De nada adianta proibir aqui e liberar ali. Em algum momento uma tragédia há de acontecer, como de fato aconteceu.

    Demonizar os torcedores corintianos é querer enxergar a realidade com um só olho. A torcida adversária patrocinou perigoso espetáculo pirotécnico no estádio, com direito inclusive a cascata de fogos com o nome do clube queimando na arquibancada. Uma reles fagulha que atingisse a bandeira empunhada por um torcedor do San José seria suficiente para transformar o estádio em um caldeirão da morte, uma boate Kiss a céu aberto.

    Finalmente surgiu a informação sobre a proibição de uso de artefatos pirotécnicos e correlatos em estádios e praças esportivas da Bolívia. Sendo assim, a segurança do estádio de Oruro foi relapsa e o Estado boliviano deve ser incluído no rol de culpados.

    O péssimo exemplo e a sensação de impunidade

    A cada dia que passa a raça supostamente humana avança na direção da involução, da degradação coletiva. Valores morais simplesmente foram abandonados à beira do caminho, como se fora algo inservível. Um bom (sic) exemplo é comportamento animalesco dos torcedores de clubes de futebol, que nos estádios mais parecem os frequentadores pretéritos do Coliseu. Selvageria é a ordem, pois é preciso destacar-se nos guetos de alguma maneira. Se ter, o verbo mais conjugado no planeta, não encontra espaço, que a insanidade o substitua, até porque de alguma maneira o cidadão precisa estar na primeira fila da vitrine da evidência. Mesmo que para isso seja necessário agir criminosamente. É o exibicionismo a qualquer preço patrocinando escassos minutos de fama.

    Esse descontrole comportamental do cidadão, que ultrapassa o limite do bom senso e avança sobre as fronteiras da legalidade, decorre do péssimo exemplo dado por aqueles que deveriam agir adequadamente, norteando uma nação dita civilizada. A corrupção e o banditismo político inverteram os valores da moralidade social e transgredir tornou-se sinônimo de esperteza. A impunidade que embala a classe política alimenta a falsa sensação que tudo é permitido a todos. Nada do que temos visto nos últimos anos é permitido a quem quer que seja. Frouxo, o conjunto legal do País é esburacado e muitos dos que deveriam aplicá-lo com rigidez se curvam à essência putrefata do poder. Assim, falar de futuro é utopia quando o presente simplesmente inexiste.

    Civismo e sociabilidade em decadência

    Agir e existir dentro dos princípios do civismo e da moral é atitude fora de um padrão pasteurizado e tacanho que só interessa à minoria de sempre, que busca manter o poder em suas mãos, quase que eternamente. Esse cenário se repete em todos os cantos obtusos do planeta, até mesmo nos rincões que se travestem de democráticos. Onde há poder nessas condições de degradação social há, inevitavelmente, pelo menos uma dose de tirania. Faz parte da concepção do poder excludente, que é exercido por seres igualmente vaidosos e criminosos.

    Respeitar o próximo é o caminho mais curto para ser excluído de um gueto, não importando o nível social, econômico e cultural desse grupo de exceção. Ou age-se da maneira imposta pela maioria burra e subserviente, ou nada feito. Esse cenário de inversão moral é o preâmbulo de uma tragédia anunciada, que cedo ou tarde dará o ar tétrico de sua graça.

    Uma nação pode ser considerada falida quando o cidadão canta de trás para frente o hino do clube do coração, mas tropeça na primeira estrofe do hino da própria pátria. Não há nação sem patriotas, sem patriotismo, sem respeito ao próximo, sem respeito às instituições, sem civismo e sem civilidade. Não há nação que resista por muito tempo à cartilha do vale-tudo. Esse estado paralelo de poder que a impunidade cria no imaginário dos incautos é capaz de destruir inúmeras gerações. E quem pensa assim é rotulado como louco.

    Punição por suposições é fazer justiça na marca do pênalti

    Longe de ser um reduto de monges sacros e veneráveis, a Confederação Sul-America de Futebol (Conmebol), conhecido reduto da tirania do mundo esportivo e organizadora da Libertadores, foi rápida ao impor sanções ao Corinthians, que até segunda ordem terá de disputar as partidas restantes sem a presença da torcida. A Conmebol decidiu com base no entendimento antecipado de que a torcida é um patrimônio do clube. O que não é verdade. Há, sim, um conhecido e longevo conluio entre clubes e torcidas, mas difícil de ser provado. E quando há condenações e punições são necessárias provas. Do contrário, o “achismo” se materializa na arbitrariedade. E não se pode querer ensinar o que é certo agindo da maneira errada.

    Assim como a política, o futebol carrega em seu embornal a disputa pelo poder. Rivalidades entre dirigentes de times historicamente adversários se debruçam sobre a lógica que cada vez mais inexiste. Cartolas desafetos creem que são maiores que os próprios clubes que representam e por isso empunham o sabre da soberba. Por interesses próprios, brigam como se fossem bárbaros. Alimentam o ódio entre torcidas rivais, das quais cada um depende à sua maneira. Essa rivalidade ignara é presença constante na Conmebol.

    As chicanas jurídicas e o jogo de interesses imundos

    Enquanto na seara desportiva o Corinthians tenta reverter a decisão que lhe afasta da torcida, nos bastidores o jogo jurídico já começou, devendo chegar à prorrogação e à cobrança de pênaltis. Se na Bolívia a Justiça mantém na prisão os doze acusados de participação no crime que culminou com a morte do jovem torcedor do San José, em Guarulhos, cidade da Grande São Paulo, um jovem de dezessete anos se apresentou ao juiz da Vara da Infância e da Juventude e assumiu ter sido o responsável pelo acionamento do sinalizador náutico.

    A partir de agora, as autoridades brasileiras terão de abrir um processo de investigação e, com base em provas fornecidas pela Justiça da Bolívia, decidir se houve o cometimento de ato infracional por parte do jovem que assumiu a culpa. O torcedor chegou acompanhado pelo advogado da Gaviões da Fiel, principal torcida organizada do Corinthians, pois na Bolívia encontra-se preso pelo menos um dirigente da agremiação.

    Tanto no Brasil quanto na Bolívia, o jovem torcedor do Corinthians será tratado pela Justiça com base na legislação especifica da infância e da juventude. Na pior das hipóteses, mesmo se condenado no vizinho país, a punição se dará por meio de medida sócioeducativa, podendo chegar, no máximo, ao recolhimento do agora acusado a uma unidade de recuperação juvenil. Como a pena, seja ela qual for, será cumprida no Brasil, pois a legislação vigente não prevê a extradição de adolescentes, o destino do menor poderá ser a Fundação Casa, antiga Febem.

    Considerando a possibilidade de ainda faltar um ano para que esse jovem atinja a maioridade – as chances são pequenas –, a punibilidade do menor agora autodeclarado culpado corre o risco de se extinguir caso os processos, brasileiro e boliviano, não forem concluídos dentro desse prazo. Sem contar que o Direito faz das contestações a ferramenta legal do atraso processual.

    Representantes do Corinthians garantem que não há qualquer vínculo entre a apresentação do jovem torcedor à Justiça brasileira e a tentativa do clube de reverter a decisão da Conmebol. Mantida a punição, o atual campeão mundial deixará de arrecadar alguns bons milhões de reais, caso avance na competição, além de ser obrigado a devolver dinheiro aos torcedores que compraram ingressos antecipados. A eventual mudez da caixa registradora alvinegra explica o corre-corre no Parque São Jorge.

    Lembrando que o metal é vil é e a inventividade do homem chega às raias da sordidez quando necessário, não se deve descartar qualquer hipótese nesse enredo que, de forma estranha e com quase uma semana de atraso, começou a ser rascunhado da noite para o dia. Nem mesmo a possibilidade remota de um eventual acordo financeiro nos bastidores pode ser ignorada. Afinal, o que representa um risco no prontuário juvenil de um cidadão prestes a alcançar a maioridade, em um país onde o responsável pelo período mais corrupto da história nacional é tratado como deus, um intocável.

    Por outro lado, a única entrevista concedida pelo suposto acionador do sinalizador foi concedida à Rede Globo, que detém os direitos exclusivos de transmissão da competição para o Brasil e cujas cotas de patrocínio foram comercializadas com a participação do Corinthians. O clube de Parque São Jorge logo após o episódio sinalizou com uma eventual saída da Libertadores no caso de a punição não ser revertida, mas em seguida fez declaração contrária. Provavelmente porque a diretoria alvinegra foi pressionada pela emissora.

    Cíclica, a história se repete sem inovação

    Diz a lógica que aquele que sai na chuva acaba se molhando. E quem lida de maneira irresponsável com fogo corre o sério risco de se queimar, mesmo que a queimadura não seja física. Rojões e sinalizadores são perigosos e queimam. Nove entre dez pessoas sabem disso, mas preferem ignorar o perigo em nome do exibicionismo ou da armação. A curta memória do cidadão colocou no porão da história o episódio ocorrido no Maracanã, em 1989, durante uma partida entre as seleções brasileira e chilena, que disputavam uma vaga para a Copa da Itália (1990).

    Rosinery Mello do Nascimento, que ficou conhecida como a “Fogueteira do Maracanã”, foi acusada de acionar um sinalizador cuja chama caiu no gramado do estádio carioca e serviu para o goleiro chileno, Roberto Rojas, fingir que fora atingido pelo artefato incandescente. A seleção do Chile, que perdia a partida por um gol a zero, abandonou a partida e Rojas deixou o gramado ensanguentado, ferimento que foi produzido por ele próprio com uma lâmina.

    Rosinery foi presa, interrogada e depois liberada, mas como sempre acontece nesse país de faz de conta, virou celebridade e acabou nua nas páginas centrais da revista Playboy. Como se fosse pouco, a “Fogueteira do Maracanã” foi homenageada no Chile. Em outras palavras, a mesma imprensa que um dia incensou Rosinery agora quer crucificar o Corinthians e um dos seus torcedores.

    Roberto Rojas, o técnico Orlando Aravena, o médico Daniel Rodríguez e o cartola chileno Sergio Stoppel foram banidos do futebol pela FIFA. O capitão Fernando Astengo e a Federação Chilena de Futebol foram suspensos por quatro anos, o que impediu o país de disputar as Eliminatórias para a Copa de 1994. Anos mais tarde, em 2001, Rojas foi anistiado pela FIFA e contratado como preparador de goleiros pelo São Paulo Futebol Clube, chegando ao cargo de treinador.

    Punir um clube não conserta uma sociedade desvirtuada

    Muitos acreditam que mantendo a punição imposta ao Corinthians o comportamento dos torcedores nos estádios mudará completamente. Não é dessa decisão que sairá a fórmula mágica capaz de mudar a forma de existir e de se comportar do ser humano. É preciso começar do zero, demolir os alicerces que sustentam uma existência trincada, mudar os valores, substituir conceitos equivocados por outros minimamente razoáveis.

    Punir o responsável pela tragédia ocorrida na Bolívia é necessário para que o Estado Democrático de Direito seja preservado, no Brasil e na Bolívia, mesmo que ambos os países tenham se rendido às lufadas perigosas do totalitarismo. Mesmo assim, é importante que a sociedade se liberte do esgarçado tecido da moralidade que a envolve e se esparrame no divã do analista, descobrindo-se a si mesma e, se for o caso, vista uma camisa de força por algum tempo.

    Viver torna-se um ato complicado quando o homem troca a coerência pelo exibicionismo burro e desmedido, quando “ter” vale muito mais do que “ser”. Nessa barafunda em que foi transformada a vida, importante é estar em evidência, vencer uma competição imaginária criada por milhões de mentes dominadas e que só os desavisados e abduzidos conseguem dar importância.

    A tragédia da boate Kiss, que teve um sinalizador com centelha do inimaginável, é o mais absurdo exemplo de que o ser humano faz da própria existência um harakiri repetido e sem fim, em que aquilo que fere e lhe ceifa a vida é a afiada cimitarra da incoerência. Enquanto o todo não passar por uma profunda transformação, discutir a parte é perda de tempo.