De: Ucho Haddad – Para: Dilma Rousseff – Assunto: Coerência

    (*) Ucho Haddad
    ((17.03.2013)

    Dilma, já sem aqueles modorrentos pedidos de licença para dispensar a formalidade, trato de assunto estranho para quem frequenta o mundo da política. Coerência! Até porque, Dilma, como você bem sabe, a política é a arte da incoerência. Veja o seu caso. Prometeu montar um ministério técnico e combater a corrupção, mas tudo ficou no campo da promessa. A corrupção corre solta nos escaninhos do poder, enquanto o Brasil cada vez mais desce a ladeira. O povo já não se recorda do que você disse tão logo venceu a eleição presidencial, mas eu ainda tenho memória boa. Por isso infernizo constantemente sua vida.

    Dilma, às vezes fico imaginando como é ser presidente da República e escovar os dentes. Você pode achar estranha essa minha preocupação, mas não se incomode com a minha loucura. Sabe, Dilma, pela manhã, quando acordo, escovo os dentes e olho no espelho. E acredite, consigo olhar para mim de maneira reconfortante, pois começo o dia com a certeza de que não menti e não mentirei aos leitores e muito menos para mim. Fico pensando como deve ser difícil para você escovar os dentes todos os dias de olhos fechados. No seu lugar teria muita dificuldade para ficar de olhos abertos diante do espelho.

    Deixemos de lado a sua incoerência do passado e passemos à do presente. Bom fazer isso logo, antes que o esquife do companheiro Hugo Chávez suma da linha do horizonte, porque o embalsamamento que fizeram às pressas em Cuba deu errado e o caudilho-companheiro não mais será adorado em uma redoma comunista, como se fosse o salvador do universo. Terá o destino de qualquer reles mortal. Os vermes que sabem fazer da carniça um banquete.

    Dilma, quando o Congresso paraguaio ejetou o seu amigo de socialismo boquirroto Fernando Lugo do cargo, o fez de forma célere e com base na Constituição do nosso vizinho país. Você, que adora defender os companheiros de ideologia, logo saiu em defesa de Lugo e disse que se tratava de um golpe. Como pode ter sido um golpe, Dilma, se o Legislativo do Paraguai agiu dentro do que determina a legislação vigente?

    Você há de alegar que foi uma atitude antidemocrática e que Lugo não teve tempo para se defender. Concordo com você, Dilma, o impeachment de Fernando Lugo foi muito rápido, mas nem de longe ilegal. Ainda bem que esse despejo político foi rápido, pois assim o ex-padre não teve tempo de fazer o que você e os palacianos fazem com maestria, que é a compra da “consciência” dos parlamentares. Acontece que qualquer decisão legal que contraria os interesses da esquerda festiva é golpe. Veja o seu inventor político-eleitoral, o fugitivo Lula. Apronta o que quer nos bastidores, mas quando algum escândalo vem à tona ele afirma que é golpe das elites e de setores da imprensa. No momento em que a opinião pública não acredita nas balelas explicativas e as dúvidas permanecem no ar, Lula foge e se isola. Boa estratégia, Dilma! Você em breve terá de fazer o mesmo.

    Pois bem, sua atitude com o Paraguai foi de extrema dureza e ganhou o apoio da esquerda sul-americana para suspender temporariamente o país do Mercosul. Isso foi golpe, Dilma! Porque você se valeu de uma decisão constitucional do parlamento paraguaio para receber no bloco econômico da porção sul do continente a Venezuela, que era refém do voto do Paraguai. Política é assim mesmo e não foi inventada para pessoas incautas e de boa fé. É preciso ser safo para sobreviver na política. E nesse quesito você tem se saído bem.

    Para alijar temporariamente o Paraguai do Mercosul, você empunhou a cangalha da liberdade e disse que o afastamento de Lugo foi antidemocrático. Sabe, Dilma, quem não lhe conhece bem e ouve seus discursos de forma isolada acredita que se trata de uma ferrenha defensora da democracia. É verdade que você tem enfrentado alguns totalitaristas do seu partido, mas ainda está longe de ser alguém que dorme abraçada à liberdade.

    Como você é muito mais sabida do que eu em termos políticos, quer dizer, então, que a decisão do Congresso do Paraguai foi um atentado à democracia? Dilma, você não chegou ao principal cargo do País porque é uma desavisada qualquer ou uma ignara. Até porque, para anular o veneno de quem a cerca é preciso ter uma peçonha letal. Não que você seja uma víbora, mas o Palácio do Planalto é um serpentário.

    Dilma, fingindo que aprendi com você que democracia não é o que ocorreu no Paraguai, em nome de milhões de brasileiros, principalmente daqueles que não lhe confiaram o voto, peço a sua ajuda. E o faço com toda a humildade de quem já não sabe o que é liberdade e democracia. Pois bem, o Hugo Chávez morreu há algum tempo e você sabe muito bem disso. Armou-se uma ópera bufa a partir de Havana para garantir a continuidade do chavismo na Venezuela. Isso é democrático e legal, Dilma?

    Como a verdade começou a vazar pelos escaninhos da farsa, o staff do Palácio de Miraflores não teve outra saída e se viu obrigado a anunciar a morte do caudilho bolivariano – notícia que já circulava pelo planeta com largueza –, mesmo que isso tenha ocorrido algumas semanas depois do fato e com alguns acertos políticos em fase de costura final. Paciência, não é mesmo Dilma, porque a “companheirada” de Caracas encenou bem durante muito tempo. Até um exemplar do Granma o cadáver do Chávez conseguiu segurar em uma das mãos e ler. Por mais antiamericanista que seja a ditadura dos seus diletos amigos Fidel e Raúl Castro, o serviço secreto cubano trabalha bem com o Photoshop.

    Deixemos para depois essa coisa do antiamericanismo. Com a morte de Chávez anunciada oficialmente, a Venezuela deveria ser comandada pelo presidente da Assembleia Nacional, o nada simpático Diosdado Cabello. Considerando que era grande a possibilidade de Cabello dar um drible em Nicolás Maduro, os chavistas foram rápidos e aplicaram o primeiro golpe. Maduro, que sequer foi eleito, tomou posse como presidente em substituição a alguém que não foi empossado. Em outras palavras, sob a ótica legal Nicolás Maduro é 100% de zero. Assim entendem os juristas das mais variadas correntes que analisaram a Constituição da Venezuela. O mais interessante, Dilma, é que Maduro, que é o nada oficial, indicou o genro de Chávez como vice-presidente. Ou seja, um nada indicou o genro.

    Dilma, isso é fantástico, não é mesmo? Sabe, cada dia que passa gosto mais de você. Na verdade, não sei o que seria da minha vida sem você, que me ensinou que aquilo que aconteceu no Paraguai, seguindo a Constituição, foi golpe, mas o que ocorreu na Venezuela, contra a Constituição, é democracia.

    Dilma, passei 54 anos na seara do equívoco, acreditando que democracia fosse o contrário do que ocorreu em Caracas. Mas não, golpe foi o que ocorreu em Assunção. Sou tão agradecido a você, Dilma, que pensei até em colar um pôster seu na porta do quarto. Só na farei isso porque acordo à noite e sou capaz de quebrar a porta. O problema, Dilma, não é o prejuízo material que terei, mas acordar quem dorme inocentemente acreditando que você não mente.