Será que sou só eu que moro aqui?

    Marli Gonçalves –

    Não, não, não, não pode ser. Não, não sou só eu que moro aqui nesse quarteirão, bairro, vila, cidade, Estado, país. O pior é que tenho me feito essa pergunta cada vez mais frequentemente e por causa de várias situações. Não é possível que seja só eu que ouço barulho, vejo sujeiras, leio absurdos, quero um mundo melhor. Mas ando cansada de ser a que reclama, briga, se expõe

    Há alguns anos havia uma expressão engraçada, de moda, para definir você parar, não se mexer, deixar passar: era “deitar o cabelo”. No meio gay era normal ouvir alguém deitando o cabelo, o que já vinha impregnado de movimentos e meneios. Mas era só para situações tipo “cansei”, “vou embora”. Hoje, me parece que todo mundo resolveu deitar o cabelo, e eu só não sei como conseguem lidar com os seus próprios travesseiros.

    Aliás, literalmente. Terão todos os meus vizinhos vidros duplos, triplos, anti-ruídos e antibarulho de bêbados, ar-condicionado? Serão todos surdos? Ou terão todos acesso fácil a previdentes e efetivas bombas, em pílulas de dormir? Ou, ainda, potentes tampa-ouvidos (os normais não adiantam)? Talvez já estejam adormecidos na vida?

    Juro que me pergunto isso em várias noites da semana, quando a falta de educação, o descaso, a sacanagem, a incivilidade, etc., me acordam; ou mesmo, nem me deixam dormir, só quando vencida pelo cansaço e mau humor. Já era ruim, mas a cada dia está pior o barulho de calçada de um certo “bar-clube-boate-restaurante-eventódromo” que fica do lado do prédio onde moro, na região central de São Paulo. Não vou dar o nome porque eles nem merecem – mereciam só um Número. Daqueles, igual aos Irmãos Metralha, na camiseta dos donos que ignoram qualquer apelo razoável. Em frente tem também um estacionamento de uma só entrada e que também é saída, uma coisa meio Boate Kiss – o que é bem proibido, mas está ali. Só pode ser porque os donos são generosos e colaboram vocês sabem com quem. Incrível. Como já reclamei para tudo quanto é canto, penso agora em agendar com o Papa.

    Um coitado ali de perto que não sei quem é, esse pirou de vez: arrumou um megafone e fica gritando contra o barulho durante horas (gravei e até postei no YouTube, Aqui). Ou seja, ele também faz barulho, mas eu até compreendo bem o seu desespero.

    Estou falando de um quarteirão badalado, um lugar super habitado, cheio de prédios daqueles com apartamentos de babar e andar de bicicleta na varanda, onde vivem pessoas poderosas, muitas crianças e idosos. No máximo, e só agora mais recentemente, duas ou três iniciativas isoladas contra a balbúrdia. Se juntássemos mais gente essa coisa não iria tão longe. Há alguns anos por coisa bem parecida mais de uma centena tomou a rua, vestidos com pijamas, camisolinhas e arrastando seus travesseiros. O máximo. E resolveram.

    Esse exemplo pessoal do meu ao redor vale também para os descalabros do país, arredores de todos nós. Há uma espécie de anestesia geral, bobeirite, que piorou com as tais das redes sociais – todo mundo reclama, xinga, mas no fundo não faz é nada. Convoca protesto, diz que vai e não aparece. Fica esperando que alguém faça, brigue, lute, enfrente, se machuque ou morra. Já vi isso. E não é bom; não dá em nada.

    É um tal de jogar serviço no colo do outro! Como desde menina tenho tentado mudar o mundo, acham (mas não é verdade) que sou super corajosa, meio heroína, vocês não imaginam como há coisas que “só eu posso escrever”, como me apelam. Só esquecem que sou sozinha, não tenho costa larga, advogado na família, e muito menos um bom trombone.

    Prestem atenção. Vocês ainda não entendem o que está acontecendo no momento, porque ainda está debaixo do pano, sufocado e até censurado: há uma caça a quem não pensa como eles (vocês sabem quem), não xinga a Justiça que os julgou culpados, não acha aquele ex lá, “Ele”, lindo, perfeito, gostoso, senhor de todas as coisas. Não vê como “Ela” é ma-ra-vi-lho-sa, está mudando o Brasil, fazendo chover e secar, distribuindo graças, acabando com a miséria – Deus tá vendo!

    Só cresce erva daninha, quem se vende para um lado. Não há mais parâmetro profissional. Há gente escalada para o trabalho sujo, e por dinheiro, muito dinheiro, que vem de apoios que caem do céu, em cascatas, mas só se você é bonzinho.

    Não, não sou só eu que moro aqui. Somos centenas aqui, milhares ali, milhões lá.

    Não queria eu fazer barulho para acordar a todos. O tempo passa e a gente fica meio descrente.

    No momento, a revolucionária que vive dentro de mim também está querendo deitar o cabelo.

    São Paulo – junte-se!- 2013

    (*) Marli Gonçalves é jornalista – Antes que perguntem, sim, já dei um show na porta desse lugar que perturba muita gente, até porque não sou de mandar recado. Até me diverti bem deixando os “chics” de cabelo em pé. Mas uma andorinha só não faz verão. E eu não sou ninguém, já que não sou só eu que moro aqui.

    Tenho um blog, Marli Gonçalves, divertido e informante ao mesmo tempo, no http://marligo.wordpress.com. Estou no Facebook. E no Twitter @Marligo