(*) Carlos Brickmann –
Não escrevo esta coluna para enterrar o amigo e mestre Ewaldo Dantas Ferreira, mas para louvá-lo. Como não louvar o repórter que levou um amigo judeu não praticante a colaborar no jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, mantido pelo cardeal d. Paulo Evaristo Arns como local de apoio aos direitos humanos e resistência à ditadura? E que, pouco depois, convenceu o amigo judeu a levar uma freira aos jogos finais do Campeonato Paulista de 1977, com 150 mil pessoas no Morumbi festejando a vitória do Corinthians contra a Ponte Preta e gritando, aos ouvidos pouco experientes da religiosa, “um, dois, três/ quatro, cinco, mil/ Queremos que a Ponte vá (…)” – e frase que segue.
Todos nós, jornalistas, conhecemos o Ewaldo repórter, presidente do Sindicato, jornalista full-time – uma de suas facetas mais estranhas, já que havia tempo no full-time para muitas outras coisas. Por exemplo, dialogar com o indialogável ministro da Justiça da ditadura, professor Gama e Silva, sobre a proibição do filme A Compadecida, obra-prima de George Jonas, com Zózimo Bulbul e Regina Duarte. O filme tinha sido proibido porque Bulbul, negro, fazia o papel de Jesus; e Regina Duarte, numa magnífica interpretação, fugia ao estereótipo da Virgem Maria diáfana, aquela que parece rezar o tempo inteiro, para representar Maria como a grande mulher que foi. Onde já se viu exibir tamanhos sacrilégios? E o Ewaldo, amigo dos amigos, amigo de Jonas, foi negociar com os demônios da ditadura a liberação da Virgem e de seu filho Jesus.
Quais as áreas de interesse do Ewaldo?
Todas: do pescador de Ubatuba que, por saber ler e escrever, foi enquadrado como subversivo por um delegado desconfiadíssimo desses intelectuais, ao político americano Nelson Rockefeller, que o considerava seu amigo pessoal e com quem se encontrava sempre que vinha ao Brasil.
Interessava-se por educação – não apenas como tema jornalístico, mas convencendo o empresário Octavio Frias de Oliveira e professor J. Reis, o notável intelectual que dirigia a redação da Folha de S.Paulo, a apoiar uma profunda reforma educacional no Litoral Norte paulista (o pessoal da ditadura acabou matando a proposta). E arranjava tempo para mostrar aos colegas do jornal certos desvios educacionais e jornalísticos, comuns na época, mas que não deixavam de ser desvios: por exemplo, uma mulher que tinha vários homens era prostituta, e o homem que tinha várias mulheres era herói. Ou que a frase “fulano foi assaltado por três negros” tem forte carga de preconceito.
Trabalhar com o Ewaldo era fácil e difícil, tudo ao mesmo tempo. Um grande repórter, uma garantia de excelentes matérias; mas cheio de segredos, que deixavam a Redação na incerteza. Certa vez, no Jornal da Tarde, sumiu umas duas semanas (e, fosse outra a empresa, não fosse a presença forte e amiga de Ruy Mesquita, estaria na rua). Voltou com uma reportagem sensacional: a demonstração de que o SNI, Serviço Nacional de Informações, até então encarado apenas como um órgão de espionagem interna, era na verdade o principal instrumento político da ditadura, envolvido em todos os ministérios e em todas as decisões tomadas pelo Governo.
E por que o segredo? Ewaldo sempre temeu os vazamentos de informação. Confiava em pouquíssima gente, no quesito discrição. E achava – mais tarde lhe daríamos razão – que os serviços de espionagem interna do país se informavam sobre pautas e se preparavam para evitar que os repórteres encontrassem o que procuravam.
Mas como trabalhar com um repórter muito bem informado, mas agitado a ponto de não ter tempo para escrever e, ainda por cima, chegado a um segredo?
Uma das coberturas jornalísticas mais bem-feitas do Jornal da Tarde envolveu o derrame que vitimou o presidente Costa e Silva, a consequente prisão do vice, a ascensão dos ministros militares, a escolha pelos quartéis do novo presidente (que seria o então comandante do 3º Exército, general Emílio Médici), tudo mesclado ao sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick e à libertação de prisioneiros pelo Governo em troca de sua liberdade.
O Ewaldo conseguiu se colocar no meio das articulações e trazer, o tempo todo, informações de primeira linha. Escrevê-las, não dava tempo: ia de uma reunião para outra. A solução JT: Fernando Morais e eu, juntos, entrevistávamos o Ewaldo e, a quatro mãos, redigíamos sua matéria. E como lidar com informações explosivas cuja fonte ele não revelava de jeito nenhum? Simples: com aval de Ruy Mesquita, informações que o Ewaldo trouxesse eram verdadeiras, sem necessidade de confirmações ulteriores. Se estivessem erradas, o jornal se corrigiria; e ele sofreria as consequências. Simples assim.
Às vezes, as coisas não eram tão simples assim. Um dia, o Ewaldo me ligou e, no habitual tom de voz conspiratório, informou onde estava e o que fazia: “Estou na onça esperando o macaco”.
Não se discute com doido. Se ele disse que está na onça esperando o macaco, é porque está na onça esperando o macaco. Alguns jornalistas de outra redação, curiosíssimos para descobrir de onde o Ewaldo estava tirando tantas informações exclusivas, me perguntaram onde é que ele estava. Fui sincero: “Ele disse que está na onça esperando o macaco”.
O Ewaldo chega, alguém brinca: “Então, o macaco esteve lá na onça?”
Ele me olhou furioso. Mais tarde, cobrou: “Nós não tínhamos combinado que não haveria informação?” Tínhamos, Ewaldo. Mas você faria a gentileza de me explicar o que é estar na onça esperando o macaco?
Ele tinha a certeza de ter sido claro. Vamos traduzir: “na onça” significa estar no centro dos acontecimentos, no lugar em que as coisas acontecem. O macaco é uma referência ao macaco do realejo, que entrega o papel da sorte preparado por seu dono. Traduzindo melhor: estava no centro dos acontecimentos (talvez alguma reunião de empresários com militares), aguardando um emissário que lhe traria uma informação exclusiva de uma fonte importante.
Funcionava? Funcionava. Alguns anos depois, Fernando Morais fez para Visão uma grande reportagem sobre Cuba (que se transformaria no livro A Ilha, seu primeiro best-seller). Mas, com o passaporte carimbado pelos cubanos, não poderia voltar ao Brasil sem ser preso. Foi Ewaldo, que dirigia a revista, que negociou a volta de Morais com os ministros Golbery do Couto e Silva e Armando Falcão. Demorou – é preciso lembrar que, numa ditadura, muita gente tem autoridade para prender, e frequentemente ninguém a tem para soltar. No final, tudo combinadinho, Fernando Morais recebeu na Argentina a ordem de cortar o cabelo, raspar a barba e tirar nova foto para passaporte. O passaporte velho deveria ser picado em pedacinhos e jogado na privada. O novo documento foi enviado ao Consulado brasileiro em Buenos Aires, que colocou a foto. Com a nova foto, diferente da que constava no arquivo policial, e o novo passaporte, cujo número não batia com os do perigoso subversivo que deveria ser preso tão logo tentasse entrar no país, Fernando Morais retornou ao Brasil.
Funcionou muitas outras vezes. Ewaldo soube que o Hospital das Clínicas de São Paulo estava se preparando para realizar o primeiro transplante de coração no país, pouco depois da operação pioneira do cirurgião Christian Barnard na África do Sul. Mas havia alguns entraves. Ewaldo convenceu o Jornal da Tarde a colaborar com a equipe do cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini – o que incluiu o envio de médicos à África do Sul, a importação de algum equipamento, a colocação do projeto em ponto de bala. O JT, com a equipe liderada por Ewaldo, fez de longe a melhor cobertura do transplante, das biografias do paciente João Ferreira da Cunha, o João Boiadeiro, e do doador, Luís Ferreira Barros, vítima de acidente de trânsito, à explicação técnica do que havia ocorrido e ao acompanhamento do caso até a morte do transplantado, por rejeição do organismo (ainda não havia remédios que a combatessem).
Com Ewaldo ou sem Ewaldo, com JT ou sem JT, a brilhante equipe do Hospital das Clínicas acabaria fazendo o transplante. Mas, com o trabalho do jornal e do jornalista, o projeto se realizou mais cedo.
Ewaldo Dantas Ferreira conseguiu destacar-se no jornalismo numa época em que os notáveis eram monumentos como Nahum Sirosky, Alberto Dines, José Hamilton Ribeiro, Carlos Castello Branco, Janio de Freitas, Reynaldo Jardim, Evandro Carlos de Andrade, Luís Edgar de Andrade, Fernando Gabeira, Luiz Orlando Carneiro; e também mais tarde, quando surgiram Ricardo Kotscho, Fernando Portela, Raymundo Pereira, Ricardo A. Setti, Augusto Nunes, José Nêumanne Pinto, Moisés Rabinovici. Havia talentos em quantidade; e, entre os mais talentosos, Ewaldo Dantas Ferreira.
Cinema, educação, política, segurança nacional, muitas reportagens. E muitas extravagâncias. Certa vez, Ewaldo viu na rua um caminhão fazendo as maiores barbeiragens. Fechou o caminhão com seu carro, pulou nos degraus e tentou abrir a porta. O motorista, cuidadoso, tinha travado a cabine. Ewaldo então começou a socá-lo (segundo explicou mais tarde, queria livrar o mundo dos malucos). O motorista, talvez com o mesmo objetivo, reagiu acelerando o caminhão e tentando derrubar o passageiro em algum poste. O caminhão ficou bem arranhado, o Ewaldo se feriu e teve de levar alguns pontos no rosto. Os colegas que o levaram para casa quiseram primeiro avisar sua primeira esposa de que ele estava machucado, mas ele os tranquilizou: ela já estava acostumada. Assim que ela abriu a porta e viu o marido coberto de curativos, pontos e iodo, desmaiou.
Mas extravagâncias, que nunca as fez? Talvez ele tenha feito mais do que o habitual, apenas isso. Temperam uma história profissional absolutamente notável. Coisas do Tião Medonho (Tião Medonho? Mas esta é uma outra história, que fica para outra vez).
(*) Carlos Brickmann é jornalista