Alvo na mira – Surreal, mas próximo à realidade da vida: a Igreja Católica sabe lidar com paradoxos na América Latina. Em vez de debater sobre o sacerdócio feminino ou sobre o celibato, pregadores leigos criam fatos em suas comunidades, assim como novas formas de culto. E, durante a Jornada da Juventude no Rio de Janeiro, a esperança é grande de que, com o papa Francisco, o poder dos laicos venha a crescer – e de que a Igreja vá se transformar.
Dom Erwin Kräutler, bispo da diocese do Xingu, tem o cuidado de não mencionar nem o sacerdócio para mulheres nem o celibato. O austríaco, que vive há quarenta anos no Amazonas, vê a questão do ponto de vista puramente pragmático.
“Tenho 28 padres para 700 mil pessoas, numa área equivalente à da Alemanha. Como podemos proporcionar às pessoas no meio da selva, ou onde quer que estejam, a possibilidade de celebrar a Eucaristia?”, questiona.
Religião em primeira mão
Muitos leigos já responderam para si a essa pergunta ao celebrarem seus ritos religiosos sem apoio clerical. Eles oram, partem o pão, distribuem o vinho, sem cuidar dos preceitos eclesiásticos segundo os quais o sacramento da Eucaristia só pode ser ministrado por padres ordenados.
“Os sacerdotes leigos assumem responsabilidade, e a Igreja avança – mesmo sem pastores e padres – e a coisa funciona bem”, diz a irmã Lucilene Antonio, que atende a pequenas comunidades no Amazonas. “Já vi mulheres que rezam a missa e depois distribuem o pão.”
A valorização dos padres laicos originou-se no espírito do Concílio Vaticano 2º, realizado entre 1962 e 1965, durante o pontificado de João 23. O encontro promoveu a renovação e a atualização dos princípios dogmáticos da Cúria Romana, o órgão administrativo da Santa Sé.
Entre seus participantes estiveram dois futuros papas: o polonês Karol Józef Wojtyła (João Paulo II) e o alemão Joseph Ratzinger (Bento XVI), que, na época, defendeu “uma Igreja menos clerical”.
“O papa Francisco sabe que a participação dos leigos é absolutamente necessária”, explica Luiz Paulo Horta, especialista em assuntos do Vaticano e membro da Comissão Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro. “Ele quer que a Igreja seja reavivada a partir da base.”
Segundo Horta, o que parece óbvio para um observador de fora significa uma revolução no contexto do catolicismo. “A Igreja somos todos nós – se não reconhecermos isso, nada acontecerá. Eu acredito que Francisco convocou a base à rebelião”, afirma.
E rebelião e revolução são conceitos bem familiares à Igreja Católica na América Latina – pelo menos no campo teológico. Já nas décadas de 1960 e 1970, teólogos da libertação latino-americanos como Gustavo Gutiérrez e Óscar Romero inspiravam clérigos e fiéis de todo o mundo.
Entre eles, conta o atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, Gerhard Ludwig Müller. Em 2004, o antigo bispo da cidade bávara de Regensburg publicou, junto com Gutiérrez, o livro “An der Seite der Armen: Theologie der Befreiung” (“Do lado dos pobres: Teologia da libertação”).
Impulsos reformistas
Ao que tudo indica, o papa Francisco aposta na força de renovação teológica da América Latina e no reconhecimento das figuras que o inspiraram. Após o missa de despedida, ele se encontra na tarde do próximo domingo (28) com o Comitê de Coordenação do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam).
Nas últimas décadas, essa comissão tem iniciado importantes reformas na Igreja. Deverá ser retomado o processo pela beatificação do arcebispo de El Salvador Óscar Romero. Assassinado em 1980, o clérigo é até hoje cultuado como santo em toda a América Latina, por seu empenho pela paz e os direitos humanos durante a guerra civil em seu país.
O teólogo brasileiro Leonardo Boff está convencido de que, futuramente, partirão da América Latina impulsos reformistas que vão revolucionar a Igreja Católica. “Nossa Igreja não espelha mais a Igreja-mãe europeia, ela tem suas próprias fontes, suas próprias tradições, heróis, mártires, profetas e personalidades – como o célebre ex-bispo de Recife dom Hélder Câmara ou o santo do povo Óscar Romero. Essas Igrejas insuflam nova vida ao cristianismo.” (Deutsche Welle)