Fazendo justiça – Os libaneses estão divididos sobre o Tribunal Especial para o Líbano (TEL), que começou nesta quinta-feira (16/01), em Haia, a julgar os supostos assassinos do ex-primeiro-ministro libanês Rafiq Hariri.
O contador Abu Marwan, 62 anos, acredita que o tribunal é muito importante. “Os assassinos devem saber que não ficarão impunes”, acredita. Já o comerciante Ali Hamid, proprietário de um supermercado, discorda. Ele considera o julgamento fruto de uma conspiração americano-israelense contra o movimento xiita Hezbollah: “O Hezbollah combateu Israel e derrotou os israelenses no sul do Líbano. Por isso, estão tentando puni-lo agora.”
Em 14 de fevereiro de 2005, o comboio de carros em que Hariri viajava foi atingido por um carro-bomba. No ataque morreram o político sunita, de 61 anos, e mais 22 pessoas. A comissão de inquérito criada pelo Conselho de Segurança da ONU apontou um possível envolvimento da Síria no assassinato.
O então governo libanês pediu ao Conselho de Segurança que estabelecesse um tribunal para investigar o assassinato. Agora, cinco membros do Hezbollah serão julgados – porém à revelia. O movimento libanês xiita rejeita entregar os acusados ao tribunal.
A posição de muitas pessoas no Líbano em relação ao tribunal é um reflexo da divisão política do país. Abu Marwan é sunita e membro do Movimento do Futuro, fundado por Hariri. Já Ali Hamid apoia o Hezbollah, que classifica o tribunal como uma maquinação do Ocidente.
Conspiração ou vingança
Lokman Slim, que diz se distanciar de ambos os campos políticos, afirma que o tribunal é um marco na história recente do Líbano. “Independentemente de qual posição política você apoia, há de se reconhecer que o tribunal vai trazer algo de novo na cultura política: o princípio da responsabilidade”, opina. “Eu tenho a sorte de vivenciar este momento e testemunhar como os libaneses vão lidar com isso.”
No entanto, ele é pessimista quanto à repercussão em seu país. “Para muitos libaneses, o tribunal é um sinônimo de vingança, de conspiração ou da divisão do país em algozes e vítimas, em xiitas e sunitas.”
Lokman Slim está empenhado, juntamente com sua mulher, Monika Borgman, em reescrever a história recente do Líbano. Eles são autores da página na internet Memory at Work. Um dos capítulos é dedicado a assassinatos políticos no país. O atentado contra Hariri é um entre muitos.
“Desde o estabelecimento do Estado libanês até o assassinato de Hariri, o país praticamente ignorou os assassinatos políticos”, diz Lokman Slim. “No entanto, com a criação deste tribunal, esse atentado mortal já não vai poder ser varrido para debaixo do tapete.”
Um sopro de esperança
O assassinato de Rafiq Hariri influenciou fortemente os posteriores acontecimentos políticos do país. No início, parecia possível que os protestos populares que começaram após o assassinato poderiam forçar uma reforma do sistema político do Líbano. As pessoas foram às ruas exigir justiça e reivindicando a abolição do sistema confessional, que define que o presidente tem que ser um cristão, o primeiro-ministro, um sunita, e que o presidente do Parlamento deve ser um xiita. Os protestos pacíficos, que envolveram participantes de todas as religiões, se tornaram famosos como Revolução dos Cedros.
“Claro que alguma coisa fermentou no Líbano naquela época”, lembra Slim. Ele recorda que entre os debates levantados então estiveram temas como a legitimidade das armas do Hezbollah após a retirada de Israel do sul do Líbano em 2000; a presença das tropas sírias e a reforma do sistema político. Mas Lokman Slim prefere apelidar os protestos de “carnaval libanês”.
Duas frentes políticas
A demanda principal dos protestos, a retirada das tropas sírias, que desde 1976 estavam no Líbano, tornou-se logo realidade. Mas muitos manifestantes de então estão hoje desapontados, como Slim. A revolta visando criar um novo Líbano fracassou.
Nas semanas seguintes ao assassinato, começaram as alianças políticas 8 de Março e 14 Março, que determinam até hoje o que acontece no país. No dia 8 de Março, o Hezbollah convocou uma manifestação pró-Síria em Beirute. Esta aliança é constituída pelos partidos xiitas Amal, Hezbollah e os cristãos do Movimento Patriótico Livre.
Forças sunitas e cristãs antissírias batizaram sua aliança com a data da grande manifestação, ocorrida no dia 14 de março. Desde então, ambas as frentes são rivais, se debatendo principalmente em torno da questão do desarmamento do Hezbollah.
Rafiq Hariri era, para muitos libaneses, o símbolo da reconstrução do país depois da guerra civil (1975-1990). Como empresário e político, contribuiu para desenvolver principalmente projetos de infraestrutura. Ele era considerado o líder indiscutível entre os sunitas libaneses.
Quase nove anos após a morte de Hariri, o país vive um momento de tensão especial entre sunitas e xiitas, provocado não somente pelo tribunal especial, mas também pela guerra na vizinha Síria. (Deutsche Welle)