Chovendo no molhado sem encher a represa

(*) José Nêumanne Pinto –

Racismo e violência no futebol têm de ser punidos, pois atentam contra a cidadania

jose_neumanne_18Há um mês, no Peru, o volante negro Tinga, do Cruzeiro, campeão brasileiro de futebol, foi recebido, ao entrar em campo contra o Real Garcilaso, pela Libertadores da América, com a imitação coletiva de macacos pela torcida adversária. A crônica esportiva em peso lamentou a impunidade reinante nos domínios da Conmebol – entidade que congrega as confederações nacionais do velho esporte bretão nos países da América do Sul – pela manifestação coletiva de intolerância racial manifestada nas arquibancadas. Na quinta-feira 13 de fevereiro, dia seguinte ao fato, a “eurodescendente” Dilma Rousseff, no exercício da Presidência da República na pátria do ofendido, assinou uma mensagem pela rede social Twitter solidarizando-se com o patrício: “Foi lamentável o episódio de racismo contra o jogador Tinga, do Cruzeiro, no jogo de ontem (12 de fevereiro), no Peru”. A presidente disse que “estamos todos fechados com o Tinga” e lembrou que a Copa do Mundo deste ano, a ser disputada no Brasil, terá o combate ao racismo como um de seus lemas.

Há uma semana o árbitro gaúcho Márcio Chagas da Silva, após apitar um jogo em Bento Gonçalves (RS), encontrou seu automóvel, que havia estacionado do lado de fora do estádio do clube local, o Esportivo, com as portas amassadas e bananas atiradas sobre a lataria avariada. No dia seguinte outro negro, Arouca, do Santos, foi ofendido por causa da cor de sua pele ao marcar um belíssimo gol contra o anfitrião (se é que cabe essa palavra), em Mogi Mirim. Mais uma vez o @dilma.com se manifestou. “É inadmissível que o Brasil, a maior nação negra fora da África, conviva com cenas de racismo”, escreveu o assessor encarregado de manter a candidata à reeleição nos computadores do eleitorado. E mais: “Vamos enfrentar o racismo! Acertei com a ONU e a Fifa que a nossa #CopaDasCopas, (sic) também será a #ACopa pela Paz e a #CopaContraORacismo”. Ou seja: que Tinga, Márcio e Arouca esperem mais três meses pelo desagravo oficial.

A comunicação, como se sabe, não é das maiores virtudes da chefe do governo. E seu desrespeito aos cânones gramaticais, superado por patacoadas como as do inesquecível improviso que fez na cúpula União Europeia-Brasil, em Bruxelas (onde ensinou ao perplexo público de governantes que Manaus é a capital da Amazônia, entre muitos outros exemplos), é acatado e repetido pela claque que escreve suas mensagens nas redes sociais. Numa frase de duas linhas o redator inseriu uma vírgula entre o sujeito e o predicado, de matar de vergonha qualquer infante recém-alfabetizado. Pior é o óbvio, no caso nada ululante, apenas inócuo: ela choveu no molhado e não encheu a represa.

O que mais chama a atenção é que a frase em vernáculo trôpego não contribuiu em um milímetro para a luta contra o racismo, seja onde for, mas não é de um óbvio inteiramente inútil. Não para ela, pelo menos. Por incrível que pareça, a máquina publicitária no poder federal faz de qualquer limão não uma limonada, mas uma torta suculenta de marketing político. A nós outros, pobres mortais pagadores das contas públicas, resta lamentar a completa alienação de Sua Excelência – atleticana que se jacta de ter frequentado o Mineirão antes de este ter sua primeira versão construída – não sobre futebol, mas sobre conceitos elementares da cidadania.

A platitude de ofício do redator do Twitter presidencial deixa claro que, mesmo em campanha pela reeleição como meta única de seu governo, a presidente não se dá conta do que acontece a um palmo de seu nariz. Assim como a violência que dizima torcedores adversários a pauladas nos estádios ou em ruas próximas, o racismo de arquibancada não tem nada que ver com o jogo jogado nos gramados. Trata-se de um fenômeno social, que precisa ser entendido e, depois, punido, não a golpes de tuitadas, mas de processos penais que levem à condenação dos agressores.

Dilma Rousseff, justiça seja feita, não é uma omissa solitária. Por mais vírgulas que sobrem na frase escrita por um assessor semialfabetizado para consumo de sua grei provida de computadores, ela pisca sozinha num vácuo de observações pertinentes. O senador Aécio Neves, o governador Eduardo Campos e a ex-ministra Marina Silva, do alto de sua pretensão de tomar o lugar de Dilma no Palácio do Planalto, não produziram um pensamento articulado, uma ideia útil ou um projeto consequente para tratar desses graves assuntos como devem ser tratados. Nem mesmo o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, negro e hiperativo cruzado contra os vendilhões dos palácios da República, deu o ar de sua graça numa discussão capaz de impedir que a humilhação sofrida por Tinga, Márcio e Arouca se repita no Mundial, ou antes dele, nas próximas partidas a serem disputadas nos estertores dos campeonatos estaduais. Ou na estação de metrô ali na esquina. Vivemos o abolicionismo de fancaria de igualitários de ocasião.

Segregar atos de truculência física ou intolerância racial nos campos a sentenças dos tribunais esportivos é fugir da responsabilidade, atividade mais comum nos três Poderes, nada republicanos. Nem a academia foge a essa obviedade cruel. O historiador negro Joel Rufino dos Santos, em entrevista à Folha de S.Paulo de domingo, acerta na mosca quando diagnostica que “essas demonstrações estão aumentando numa progressão geométrica”. Mas erra feio quando limita a responsabilização aos dirigentes do corrupto, incompetente e estroina futebol nacional. Sim, os cartolas poderiam determinar a paralisação imediata de partidas com manifestações racistas da torcida e a perda de pontos pelo time visitado. O Cruzeiro devia ter-se retirado do campo no Peru, mesmo sabendo que perderia os pontos, como perdeu no gramado. Mas, como a violência, o racismo dos estádios é responsabilidade de todos: do governo, da oposição e da sociedade. E tem de ser punido. Só execrá-lo é covardia.

(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.