Há algo de podre na Granja Comary, onde o centroavante deveria ser Freud, não Fred

(*) Ucho Haddad –

ucho_23Um movimento inexplicável surgiu em pouco mais de duas dúzias de horas após o Mineiraço. Os brasileiros que acreditaram na seleção e viram o sonho do hexa desmoronar, como castelo de areia em meio ao furacão, não querem mais ouvir falar no assunto. Alegam que o tema já esgotou. Ora, uma nação é enganada durante meses a fio, com promessas absurdas e impossíveis de serem cumpridas, mas os enganadores não podem ser cobrados e têm o direito de passar impunes. É isso que se depreende da postura arredia da população diante do fiasco da seleção.

Há mais de três décadas torço contra a seleção – algo que muitos sabem e sempre assumi publicamente – apenas porque torço incondicionalmente pelo Brasil. Por isso não deixarei de contestar os protagonistas de uma ópera bufa que tomou conta da cena nacional após o histórico vexame que se consumou no Mineirão. A derrota por sete gols a um para o competente selecionado alemão não bastou para que a CBF interrompesse a farsa. Resolveram os cartolas do futebol tupiniquim explicar o inexplicável.

A quem querem enganar? Por qual razão agem dessa forma diante de um povo envergonhado? Nessa linha não tem apenas um boi, como prega a sabedoria popular, mas uma manada de escândalos e desmandos.

Com a catástrofe ainda esparramada no gramado da arena belo-horizontina, coube a David Luiz, entre lágrimas teatrais e nada convincentes, dizer que gostaria de ter dado ao menos uma alegria ao sofrido povo brasileiro. Arrogante durante a maior parte do tempo, mas encenando uma falsa simpatia, tentou vestir a fantasia do humilde no final do baile. Ora, se a intenção dos jogadores era incendiar a nação com o rastilho da alegria, que tivessem levado a sério o fato de participar de uma Copa do Mundo na condição de anfitriões. Nada disso aconteceu. Acreditaram que entoando a letra do Hino Nacional com cara de poucos amigos era suficiente.

O ufanismo foi o combustível da seleção, que cortou a fita da competição a reboque da tese de que estava como uma mão na taça. Bobagem das grandes, pois uma coisa é ser favorito, outra é acreditar ser possível vencer por antecipação. Vai-se à guerra com um estilingue no bolso e meia dúzia de pedras na mão, acreditando que diante de artilharia pesada o triunfo não escapará. Só mesmo um alienado é capaz de acreditar em tamanha sandice.

Sou do tempo em que competições esportivas eram encaradas com doses de responsabilidade. Podia-se não ganhar, mas o afinco sempre estava em campo. David Luiz tentou persuadir a opinião pública com seu choro, até porque ficou evidente que nada do que foi anunciado e prometido jamais circulou pelo universo da verdade. A encenação não emplacou. Uma obra realizada para a Copa desabou na capital mineira, deixando dois mortos e mais de vinte pessoas feridas, mas esses vilipendiadores do sonho alheio sequer fizeram menção à tragédia ou uma homenagem às vítimas. Preocupados estavam com seus penteados esdrúxulos, suas botinas reluzentes, a máscara que acabou caindo, a avalanche de tostões nas contas bancárias. Senhor da razão, o tempo há de manter na memória da população o fato de que esses mercenários de chuteiras conseguiram transformar o sonho de uma nação em pesadelo.

O vexame começou a ser esculpido muito antes do jogo contra a competente equipe alemã. Mais precisamente quando a CBF concordou que a seleção fosse tratada apenas e tão somente como produto comercial, sem que seus integrantes se preocupassem com a preparação necessária para enfrentar adversários fortes e determinados. Deu no que deu: uma enxurrada de campanhas publicitárias milionárias e ações de marketing que consumiram fortunas, mas o principal foi deixado de lado. O futebol! Muita gente ganhou dinheiro a rodo nessa operação malandra e desconexa, menos a bola no gol.

Findo o chororô protagonizado pelos jogadores, ainda no palco da tragédia, na sequência surgiu em cena a comissão técnica da seleção, impulsionada por desculpas previamente combinadas. Números percentuais na ponta de língua, planilhas e anotações em mãos. Luiz Felipe Scolari e Carlos Alberto Parreira abusaram da paciência daqueles que têm bom senso. Scolari destilou uma falsa humildade que chegou a irritar. Quem conhece como funciona o futebol verde-louro em suas coxias sabe que a entrevista coletiva dos comandantes da seleção foi um teatro de quinta. Para quem disse, dias antes, que deveria ir para o inferno quem discordasse das suas decisões, Scolari mostrou-se um ator estreante.

Contudo, causou estranheza o fato de a imprensa, sempre genuflexa, ter concordado com o besteirol que foi despejado pro Scolari na Granja Comary. Em qualquer lugar do planeta, um executivo de companhia que coloca no bolso perto de R$ 1 milhão por mês deve explicações minimamente convincentes para eventual fracasso. O técnico do onze nacional alegou não saber o que aconteceu com a equipe durante a avalanche germânica. Limitou-se a dizer que ocorreu um apagão generalizado, inclusive na comissão técnica. Ora, fosse a seleção uma empresa privada, os dirigentes já estariam presos. Mas nessa barafunda chamada Brasil o pandeiro toca longe do ritmo do bom senso.

Para dar continuidade ao circo que se formou no reduto da seleção brasileira, Parreira, durante fatídica entrevista coletiva, abusou do devaneio enquanto deixava transparecer o seu nervosismo diante dos jornalistas. Após ler a carta de uma incauta torcedora que incensava o técnico do timinho conhecido como seleção, Parreira ousou dizer que a participação na Copa teve um saldo positivo. O País assiste ao selecionado nacional ser derrotado de forma vergonhosa na partida que se transformou na maior tragédia do futebol brasileiro, mas o saldo foi positivo. Tudo muito bem, Parreira, você sabe das coisas, é primo em segundo grau de Aladim.

Ora, se saldo positivo existe nessa epopeia, com certeza está na conta bancária de alguns. Aliás, o quarto lugar na mais importante competição do futebol planetário dará aos jogadores da seleção uma gorda premiação para ser dividida: R$ 44 milhões. A dinheirama, doada pela FIFA, será utilizada na maior parte para premiar os jogadores e a comissão técnica, de acordo com informações da nada confiável Confederação Brasileira de Futebol. A FIFA é tão ilógica, que premia o perdedor. Igualmente ilógico, o torcedor acredita na seleção.

A cereja desse bolo indigesto ficou a cargo de Neymar, que interrompeu o repouso absoluto que lhe foi imposto pelos médicos para se juntar à seleção brasileira. Escalado para tentar consertar a lambança, o atacante apresentou alternância comportamental durante inesperada e concorrida entrevista. Disse o camisa 10 que também sente-se responsável pelo fiasco que teve lugar no Mineirão. Bobagem descomunal, pois o atleta ergueu as mãos ao céu por não estar em campo no dia em que a seleção protagonizou o maior vexame de sua história. Não estivesse contundido, Neymar não teria segurado o rolo compressor alemão, que por caridade reduziu o ritmo para não humilhar os brasileiros.

De incompetentes e irresponsáveis a coitados e incompreendidos. Eis o caminho que jogadores e comissão técnica sonham em percorrer, pois só assim conseguirão manter em funcionamento a cornucópia futebolística que os sustenta. Por isso têm abusado das declarações encomendadas, como se boa parte da população não tivesse massa cinzenta.

Neymar foi às lágrimas quando perguntado sobre a joelhada do colombiano Zúñiga. Afirmou o atacante da seleção que dois centímetros a mais na lesão e agora estaria em uma cadeira de rodas. Dramatização excessiva, diga-se de passagem, pois são reduzidas as chances de isso ocorrer em uma contusão como a sofrida por Neymar.

Quem não gosta de contato deve passar longe do futebol e escolher uma atividade mais suave, como dominó, bridge, peteca e outros mais. Neymar aproveitou a oportunidade e criticou a imprensa, como sempre acontece quando algo dá errado no Brasil. O jogador pode dizer o que bem entender, até porque a democracia ainda está em vigência no Brasil, mas tentar arrastar a imprensa para o olho do furacão é excesso de covardia. Dizem os mais experientes que quem não pode não se estabelece. Sendo assim, Neymar perdeu a oportunidade de conhecer o estrito significado de silêncio obsequioso.

Voltando ao colombiano Zúñiga, o atacante da fracassada seleção canarinho disse: “Quando estou de frente e tenho a visão periférica, consigo me defender. De costas, eu não consigo. A única coisa que pode me defender de costas é a regra”. Nos poucos dias em que esteve longe da Granja Comary, o atacante parece ter conversado com a pedra filosofal.

Esse discurso maroto e supostamente consistente perde força quando se revê o jogo de abertura da Copa, entre as seleções brasileira e croata. Neymar foi punido com cartão amarelo por ter desferido maldosa e intencional cotovelada no rosto de Moldric, jogador da Croácia.

Quando atacou o croata, Neymar estava de frente e tinha uma visão periférica da jogada, mas de forma consciente lançou o braço na direção do rosto de Moldric. Sem dúvida a entrada de Zúñiga no atacante brasileiro foi algo fora do contexto do fairplay e deveria resultar em algum tipo de punição, mas um golpe violento no chamado gorgomilo pode trazer sérias consequências.

Em suma, futebol jamais foi uma reunião de monges, mas com certeza pode ser um amontoado de falsos gênios, que como tal acabam falhando em determinado momento.

Tomara que o Brasil não se deixe levar pelos discursos visguentos balbuciados a partir da Granja Comary e tire boas lições da vergonhosa derrota imposta pelos alemães. Até porque, a seleção mostrou à nação que o centroavante deveria ser Freud, o da barba cerrada, não Fred, o do bigode grosso.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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