Os humores e os certos nojinhos

(*) Marli Gonçalves –

Foram me chamar, eu estou aqui, o que que há? Desisto. Não vou ficar quieta. Você liga a tevê e o que querem te vender, além de linguiças, carnes, carros, bancos modernos e móveis solúveis em pouco tempo? Desodorantes. Desodorantes íntimos. Outros, nem tanto. Querem que você tenha nojinho de si próprio! Sai fora.

marli_goncalves_22Sensação de calcinha limpa todo o dia, e a moça sorridente em suas inúmeras atividades diárias, além de tropeçar em um coitado de um gato quando acorda, correndo para ir ao banheiro para logo pôr o tal negocinho protetor. Zap. O moço bonito passa o desodorante e, logo depois, passa o próprio dedinho nas suas próprias axilas, para horror da voz feminina em off que o repreende severamente: “é estranho”, sentencia, deixando-o com cara de otário que caiu do caminhão de mudança. Zap. Agora tentam vender um shampoozinho rosinha para calcinha, mais uma tranqueira especial, separatista, que ordena um verdadeiro isolamento dessa peça tão charmosa e de personalidade, mas fadada a tomar banho longe das outras e em outros aposentos.

Não bastasse a repressão rigorosa aos nossos eflúvios, toma ouvir falar da polêmica comercial do comercial da comercial perfumaria do Dia dos Namorados, voltado ao público gay. Delicado, feito com cuidado, mas o seu aroma chegou aos empertigados narizes desses políticos de última, que sempre me parecem desdenhar, mas quererem comprar – se é que me entendem. Enfim, como nunca vai mais parar de piorar, surge gente atribuindo àquela mulher, glorinha, chic, chique, que ela teria falado uma pérola que até os porcos desdenhariam. “O único problema que vejo nesta campanha é que os gays não usam Boticário, e sim, perfumes importados”. Tá bom, não foi ela, mas é que como a moça só conhece bicha rica/chique, e gosta de sair distribuindo regras e condutas, até que combinou. Ela não perderia um patrocinador desses. Não deve ter dito isso mesmo. Tem de dar um pulo no meio da Parada Gay para ver quem e como são os gays brasileiros, a massa, aplaudi-los por suas audácias no meio de duras realidades.

Há muitos anos conheci uma moça – foi até próxima – mas da qual me lembro mais por um único detalhe: ela usava um sabonete para cada parte do corpo, de tanto nojinho, um pouco de TOC, outro de imbecibilidade – sim, tinha esse componente. Lembro que era de tal forma reprimida que certamente nunca tinha se tocado, ou mesmo se admirado nua. É o que querem que a gente pire, tal sorte de produtos que estão sendo lançados para tirar nossos cheiros, os corporais, os que deixamos no meio ambiente e os de nossas roupas. Alguns produtos são tão fortes que parecem Pinho Sol, Lysoform – pioram a emenda e o soneto. Quem usa transporte coletivo poderá atestar tranquilamente o que digo. O quanto sofrem com perfumes, loções e desodorantes mata-ratos.

Estão confundindo higiene, a fundamental e indispensável higiene, o banho, a limpeza, o asseio, e forçando a mão para que tenhamos os tais nojinhos de nossas próprias exalações e emanações. Há ginecologistas alertando para o perigo – ficar mudando muito o cheiro tira tesão, façam atenção. Somos humanos, mas temos muito ainda de bicho e de instintos naturais que se dissolvem se disfarçados assim. “Cada pessoa tem seu cheiro que é responsável por ativar áreas do cérebro relacionadas à excitação e ao orgasmo. É preciso cuidado ao mascarar o próprio cheiro, o que está diretamente relacionado com a sexualidade”- explicam. Fora as alergias cada vez mais terríveis dos pacientes que têm chegado aos consultórios. Tudo também na conta de que há tanta repressão que as mulheres não se tocam nem para se lavar, preferindo esses artifícios que acabam com o pH da pele. Os homens, então, ah, esses também não sabem bem limpar as suas coisas direitinho.

Nessas de saber mais sobre esse aspecto, me deparei com a – de alguma forma, genial – base da medicina hipocrática, a teoria dos quatro humores, e que originam também a palavra que tanto usamos e apregoamos, humor.

Segundo a teoria, que prevaleceu até praticamente o Século XVII, os líquidos que correm dentro do nosso organismo quando desequilibrados levavam às doenças e dores. Divididos em qualidades, sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, vindos, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço, determinariam até nosso próprio temperamento. Como os quatro elementos, ar, fogo, terra e água, quentes e frios, expressariam tanto pessoas amáveis e alegres, como irritadas, ou desanimadas, por exemplo. As com mais fleuma (das veias linfáticas) seriam moderadas, frias, “diplomáticas”. Daí até outro termo, quando dizemos que alguém calmo ou impassível, até elegante, tem fleuma.

As curas viriam do controle desses líquidos- com ervas de efeitos diuréticos, purgantes, sudoríferos e soníferos. Rolava até uns sanguessugas para ajudarem no serviço em busca do equilíbrio perdido. Interessante.

(Fim do momento Marlizinha também é cultura… )

Liberdade para nossos humores! Nossas seivas, eflúvios! Chega de deixarmos nos forçarmos aos certos e errados que criam desajustes com nossos próprios corpos, vergonha de nossos próprios cheiros. Imposições tão depreciativas que têm levado tanta gente mais rápido para debaixo da terra; “lá”, nada disso tem muito valor, muito menos perfume. Gordos, magros, siliconados, bombados – todos vão para o mesmo destino. Alguns estão indo embora até muito mais rápido, de tanto que quiseram ficar bonitos e cheirosos.

Relaxa. Como tão bem e freneticamente disse Rita Lee, legal é ser bonito e gostoso, para você olhar, cheirar e querer. “Eu sou uma fera de pele macia, Cuidado, garoto, eu sou perigosa…”

São Paulo, no Santo Antonio`s day, 2015

(*) Marli Gonçalves é jornalista – Um grande amigo, alucinado por cinema, dizia, maroto: “Se até a Elizabeth Taylor peida, porque eu não posso?”

Tenho um blog, Marli Gonçalves, divertido e informante ao mesmo tempo, no http://marligo.wordpress.com. Estou no Facebook. E no Twitter @Marligo

apoio_04