(*) Rizzatto Nunes
No dia 1º de novembro entrou em vigor nova regra que pune motorista que atinja os 20 pontos em sua carteira de habilitação com a suspensão do direito de dirigir por seis meses. Já tratei deste assunto por aqui e sou obrigado a retornar ao mesmo, agora estranhando que até hoje, nenhuma associação que defenda cidadãos brasileiros ou mesmo o Ministério Público, tenha movido ação judicial para declarar a inconstitucionalidade de parte do Código de Trânsito Brasileiro.
Sei que existem muitos e graves problemas para nos preocuparmos, mas não é por causa disso que outros – aparentemente menos importantes (embora, pareçam-me, relevantes) – sejam deixados de lado.
Como um dos assuntos preferidos de certas autoridades e da mídia é criticar motoristas, eu, com a devida licença da expressão, ficarei na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas.
Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações.
No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas “zonas azuis” sem a colocação do cartão ou uso de aplicativos, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a Capital de São Paulo etc. É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na Av. Paulista, em São Paulo. Nesse caso, a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas.
Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo.
Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido.
É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser – só pode ser – muito diferente.
O problema está em que as normas de trânsito estabeleceram uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações, acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponhamos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por cinco vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 20 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação-CNH.
No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes com pontuação gravíssima não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez).
O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir os 20 pontos ou mais.
Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional.
Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, “caput” e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador.
Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, a lei colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. E esse aspecto viola o princípio da igualdade. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei.
Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e, por exemplo, outra por excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo – como não é – possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas.
A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas:
a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado;
b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator;
c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena.
O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”.
Ora, conforme expus, as normas de trânsito, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes.
Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena:
a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir;
b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade e/ou de forma perigosa, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul (ou iPhone) ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo;
c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais.
Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.