(*) José Nêumanne Pinto
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello disse, em entrevista à Rádio e Televisão de Portugal (RTP), que a prisão de Lula é ilegal e também que o presidenciável petista é inelegível.
A declaração de Sua Excelência, levada ao ar na sexta-feira 23 de junho, produziu impacto e estranhamento. A Nação está abalada pela plena vigência de uma crise política, econômica, financeira e ética que amargura 24 milhões de brasileiros sem emprego, perspectivas nem esperança, segundo informação dada por uma das poucas instituições do Estado nacional que ainda se pode orgulhar de gozar de prestígio e credibilidade, o IBGE. Isso se agrava com a expectativa da realização a 106 dias da sentença (no sentido semântico, não no jurídico) de eleições gerais – para presidente, governadores, Câmara dos Deputados, Senado Federal e Assembleias Legislativas – com prognósticos imprevisíveis e preocupantes.
Nesse panorama, o sujeito da frase é o principal elemento de perturbação de um cenário, embora não seja, justiça lhe seja feita, o único. Presidente mais popular da História da República, conforme recentes levantamentos de pesquisa de opinião pública, deixando para trás figuras mitológicas como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, mantém confortável dianteira nos levantamentos de intenção de votos para o pleito de 7 e 28 de outubro.
Se não fosse – como é – impedido de disputar o pleito, por encarnar boas lembranças de bonança, que seus devotos dissociam da desgraceira atual, por ela produzida, ou por emular Gulliver em ambiente de pigmeus, Lula é um espantalho entre abutres. Alguns querem devorá-lo, seja porque governará contra seus interesses oligárquicos, seja por terem consciência da catástrofe incomparável que seria a repetição do desgoverno da demagogia populista e devoradora de recursos públicos. Mas ainda se prostram a seus pés políticos, burocratas e sanguessugas de academia, cultura e artes expulsos do opíparo banquete da espoliação do erário.
No mítico Raso da Catarina do sertão de místicos e cangaceiros, o ministro Mello surge como um misto do beato Antônio Conselheiro e do cabra Corisco com o cajado da Constituição na mão canhota e o martelo de juiz na direita. Na semana encerrada com seu aparente golpe no cravo e outro na ferradura, seus colegas aliados na Segunda Turma cuspiram nas inúmeras evidências e “coincidências” de depoimentos de delatores premiados para negar, por cinco a zero, punição ao casal Gleisi Hoffmann e Paulo Bernardo. As batatas da vitória foram devoradas no festim (com toda a razão) de crentes do padim Lula, que atribuíram à notícia o condão mágico de abrir a cela que confina o profeta e anula a profecia.
A decisão, mais do que evidente, inevitável, de Fachin de transferir para o plenário o julgamento da tentativa da defesa do petista de cancelar a condenação do réu, decidida em primeira e segunda instâncias (por unanimidade), verteu fel no chope da vitória num jogo que nunca foi, nem tinha como ser, preliminar. O relator da Lava Jato não podia deixar de fazê-lo, dando sequência à decisão tomada pela vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), desembargadora Maria de Fátima Freitas Labarrère. Da mesma forma, o presidente da Segunda Turma do STF, Ricardo Lewandowski, que ninguém em sã consciência acusaria de antilulista, nada poderia fazer de diferente do que fez: desmarcou a sessão (anteriormente agendada para ontem) na qual tal pedido seria votado.
Nessa guerra, em que se permitem adiamentos, recursos e chicanas vigentes no Judiciário, que parecem nunca ter fim, o advogado de Lula “estranhou” que Labarrère tenha tomado a decisão às vésperas da reunião já marcada no STF. Ou seja, à falta de fatos e, agora, até de argumentos, restou a Cristiano Zanin exigir do Judiciário que submeta o calendário à conveniência de seu cliente.
No fragor dessa batalha é que o ministro Mello transportou para além-mar sua guerrilha particular, ao lado dos companheiros de turma Lewandowski, Gilmar, Celso e Toffoli, que soltam presidiários de colarinho-branco aos magotes, contra decisão do colegiado pleno do STF, que autoriza a prisão de condenados em segunda instância. Ao fazê-lo, o douto membro da colenda Corte a desafia, sobrepondo com arrogância às decisões majoritárias desta as próprias convicções ou os interesses, sejam lá quais forem, pessoais. Destarte, ele confirma o veredicto pouco lisonjeiro sobre a mais alta instância judiciária manifestado pelo especialista Joaquim Falcão, da FGV: o de que não há um STF uno, mas um conjunto desarmonioso de 11 cabeças. Ou seja, uma conjunção de Hidra, o monstro mitológico que habitava a lagoa de Lerna – com corpo de dragão e nove cabeças de serpente, cujo hálito era venenoso e que podiam se reproduzir –, com o deus romano Jano, de duas faces, uma olhando para a frente e a outra, para trás.
“Processo, para mim, não tem capa. Processo, para mim, tem unicamente conteúdo. Eu não concebo, tendo em conta minha formação jurídica, tendo em conta a minha experiência judicante, eu não concebo essa espécie de execução”, declarou Mello. A frase dá definitivamente eco ao discurso dos arautos do profeta de Vila Euclides, segundo os quais este é vítima de uma perseguição contumaz de elites exploradoras que controlam a polícia, o Ministério Público e as duas instâncias iniciais do Judiciário. Ao fazê-lo, o ministro adere à campanha difamatória do Partido dos Trabalhadores (PT), que não tem alternativa ao presidiário mais popular do País para disputar a eleição presidencial, no pressuposto de que toda a Justiça se resume ao plenário fracionado da corte real, entendida a palavra como de reis, e não da realidade.
E sem perder o hábito de confundir só para contrariar, repetiu o Conselheiro Acácio, ao reafirmar o óbvio ululante da inelegibilidade de Lula.
(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.