A importância das ações coletivas para a defesa dos direitos dos consumidores

(*) Rizzatto Nunes

Um dos mais marcantes aspectos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), apesar de regrar uma série de direitos subjetivos individuais dos consumidores, é o de sua preocupação especial com a proteção coletiva, isto é, de toda a coletividade de consumidores.

Se observarmos o título III da lei, “Defesa do Consumidor em Juízo”, perceberemos como isso é significativo na lei 8078/90. Muito embora a proteção individual não esteja excluída — o que, aliás, era mesmo de se esperar —, a natureza do regramento é claramente coletiva. Tanto que, como se sabe, o CDC é o responsável, no Sistema Jurídico Nacional, por fixar o sentido de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.

A lei consumerista permite a proteção dos consumidores em larga escala mediante Ações Civis Públicas (ACP). É por elas que o consumidor pode ser protegido por iniciativa de associações e do Ministério Público (MP) em todas as esferas. E existe uma luta intensa no Judiciário contra esse direito fundamental. Várias empresas de grande porte, quando acionadas em Juízo, fazem um esforço enorme para tentar desconstituir a ação coletiva atacando as associações que a propõe. Isso acaba por reforçar a importância das ações propostas pelo MP.

E, olhando bem de perto o CDC, o que se percebe é que ele, digamos assim, “quer mais”, ele “gostaria” que existissem muitas ações coletivas, pois um de seus alicerces fundamentais na questão processual é exatamente este de controlar como um todo os atos dos fornecedores.

Além disso, é importante lembrar que as ações coletivas são, talvez, as únicas capazes de fazer cessar aquilo que eu chamo de “abusos de varejo”: uma tática empresarial dolosa de impingir pequenas perdas a centenas ou milhares de consumidores simultaneamente.

Veja-se um exemplo disso, numa mala-direta enviada por um grande Banco:

“Prezado(a) Cliente,

Temos uma novidade que vai aumentar ainda mais a sua tranquilidade. O Serviço de Proteção do seu Cartão de Crédito (…) foi ampliado e, a partir do vencimento de sua próxima fatura, você contará com o novo Seguro Cartão (…).

Agora, além da proteção contra perda e roubo de seu cartão de crédito, você terá a mesma proteção para saques feitos sob coação em sua conta corrente.

E mais: com o Seguro Cartão (…) você contará com um conjunto de coberturas e serviços, como renda por hospitalização e cobertura por Morte Acidental e Invalidez Permanente em consequência de crime, além de serviços de táxi, despachante, transferência inter-hospitalar e transmissão de mensagens.

Por apenas R$3,50 mensais, somente R$1,00 a mais do que você paga atualmente, você terá acesso a todos esses benefícios.

Esta é uma segurança da qual você não deve abrir mão. Porém, caso você queira manter apenas a cobertura atual, basta que nos próximos 30 dias você entre em contato com o (…) por Telefone.

Cordialmente,”

Perceba o abuso: o Banco já lançou o valor de R$1,00 na fatura do consumidor. Se este não tiver interesse no novo produto/serviço enviado/lançado, terá que tomar a iniciativa de telefonar para o banco para cancelar o que nunca pediu. Some-se a isso a eventual dificuldade de ligar para o banco visando o cancelamento.

Agora, como se trata de apenas R$1,00 ao mês, muito provavelmente os consumidores nada farão, nem reclamarão. Individualmente não compensa. Mas, o banco terá enorme vantagem com seus milhares de clientes.

Somente uma Ação Coletiva teria eficácia na resolução desse tipo de problema.

Lembre-se, também, de um outro exemplo vergonhoso: o da maquiagem de pesos e medidas feita diversas vezes pelas grandes indústrias de alimentos, na qual os produtos tiveram seu peso líquido diminuído sem que os consumidores soubessem. Manteve-se o preço e diminuiu-se o peso ou a medida dos produtos em pequenas quantidades e metragens, de modo que não só os prejuízos foram individualmente pequenos, como por isso mesmo, demorou a ser notado!

Apesar dos avanços, a área jurídica ainda não respira uma atmosfera cultural de ações coletivas. Uma explicação possível para isso, diz respeito ao ponto da história em que elas foram trazidas para as relações de consumo.

O CDC surgiu no cenário jurídico nacional com muitos anos de atraso, gerando um problema típico de memória. Explico: quase todos aqueles que militam na área jurídica formados até 1990 não entendiam as inovações que a lei trouxe, porque foram estudar relações de consumo com base no aprendizado obtido no Direito Privado. E mesmo depois dessa data, ainda demorou muitos anos até que os conceitos introduzidos no sistema jurídico pelo CDC pudessem começar a ser entendidos.

O prestígio de nosso Código Civil de 1916 impregnou o modo de percepção dos estudiosos do direito que, com base no seu acervo mnemônico, acabavam interpretando – e ainda o fazem — as normas a partir do clássico modelo privatista. O vetusto Código Civil, que entrou em vigor em 1917, recebeu forte influência do direito privado europeu do século anterior, e que já não tinha plena relação com a nossa realidade. Ora, esse direito civil não estava aparelhado para atender as demandas típicas do processo de industrialização capitalista do século XX e seu modo de produção estandardizada, seus esquemas de oferta e marketing, sua capacidade de distribuição etc.

E, apesar da edição do novo Código Civil (de 2002), que é muito mais moderno e atualizado que seu antecessor (incorporando, inclusive, vários aspectos que envolvem a sociedade capitalista atual), por influência, em parte, dessa legislação antiga e a interpretação que dela se fez, têm-se até hoje dificuldade para se compreender muitos aspectos da sociedade de massas, dentre os quais o sentido das ações coletivas.

É por isso, por exemplo – repetindo o que acima disse –, que em pleno ano de 2018, ainda se tente discutir a legitimidade de associações de consumidores para defender os direitos da coletividade de consumidores.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.