(*) Ucho Haddad
“A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria e a maioria é formada de imbecis.” – Jorge Luis Borges
Democracia não limita-se ao direito do cidadão de escolher seu governante. É um conjunto de direitos e obrigações que, analisado à lupa, agrada tanto quanto preocupa. No Brasil, democracia passa ao largo da teoria de que o poder emana do povo. Talvez o brilhante Carlos Drummond de Andrade tenha definido essa teoria de maneira definitiva e milimetricamente precisa: “Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder”.
Democracia tem um sentido amplo que a sociedade sequer alcança, pois há em sua composição ingredientes tão imprescindíveis quanto intangíveis. Entre os quais está a liberdade, cuja importância a transforma em algo imperceptível, como se fizesse parte de cada um. De fato, a liberdade não é e não pode ser diferente. É, sim, parte integrante de cada um. Sem ela o ser humano inexiste.
De tão imperceptível, a liberdade ganha notoriedade quando ameaçada. Ao ser tolhida, seu valor resplandece. Mas quando isso acontece, é tarde demais para se preocupar com algo que deveria merecer a atenção diuturna de cada um. Liberdade não tem preço, não é moeda de troca. Liberdade é democracia e vice-versa. Democracia e liberdade se confundem, são sinônimos, são homônimas. Democracia é imaculada, não se avilta, não se negocia, nem mesmo para escapar das piores situações.
De tão suave aos ouvidos e à alma, democracia mais parece uma valsa, mas é preciso estar à altura do que seus rodopios exigem. Viver em democracia requer preparo contínuo e dedicação espartana. Um passo fora do ritmo da orquestra da liberdade e tudo está perdido. Não é missão para iniciantes nem tarefa para valsistas quadrienais. É desafio para quem está disposto à vigilância cotidiana. Do contrário, nada feito.
Democracia e política são xifópagas, por isso é preciso pensar com o cérebro, jamais com o fígado, mesmo em tempos bicudos. Aliás, em tempos bicudos o cérebro tem de funcionar a plena carga, o tempo todo. Neste domingo, 28 de outubro, o Brasil foi às urnas para mudar o cenário, não o destino. O dia chega ao fim e o título eleitoral retorna ao fundo da gaveta, de onde sairá novamente daqui a dois anos, talvez. Com isso, com a alegada mudança consumada nas urnas, o brasileiro não tem mais com o que se preocupar. Será mesmo?
Engana-se quem pensa que a suposta mudança que emergiu das urnas é tão verdadeira quanto as mirabolantes promessas feitas e sinônimo de solução para os quase infindáveis problemas nacionais. Votou-se contra, não a favor. Votou-se contra a corrupção, contra o petismo. Esse recado era importante e sem dúvida necessário. Resta saber se surtirá efeito. Contudo, votou-se contra a democracia, contra a liberdade. Eis o perigo! Aceitou-se colocar a democracia em risco em nome de algo incerto.
Permanece a pergunta que ninguém sabe responder: votou-se a favor do quê? Votou-se a favor de nada. Quem ousa responder arrisca dizer que votou-se a favor de não ter o PT pela frente. Essa resposta em ziguezague, típica de quem desconhece a política, serve apenas para continuar anestesiando a própria consciência. Votou-se a favor do discurso fácil, da cultura do ódio, da intolerância, da falta de propostas, do mimetismo rasteiro. Só, apenas só.
O modelo criminoso de governar que prevaleceu no País nos últimos tempos levou a sociedade à indignação, não poderia ser diferente. Despreparado, o escolhido para em breve comandar a nação vislumbrou no horizonte, tempos atrás, a possibilidade de transformar o grito de indignação em ópera do ódio. Na condição de maestro do caos, regeu a massa ignara com a batuta do oportunismo. Diante da cantoria afinada, não hesitou em recorrer ao rufar dos tambores para ensurdecer a patuleia, que desde então deixou de ter ouvidos para a verdade e neurônios para a lógica. Foi o bastante!
Imaginei que estávamos em processo eleitoral, mas com o avanço do tempo descobri que o Brasil era palco de competição de mitômanos. A mentira contumaz foi alçada ao Olimpo da verdade como se assim fosse, não importando que ao final prevaleceria uma vitória pírrica. Prometido foi aquilo que sabia-se ser impossível de ser cumprido, prometido foi aquilo que sabia-se ser ilegal, prometido foi o que evidenciava ser um atentado à Constituição. Prometeu-se aos bolhões, aqui e acolá, a mais não poder. Não há problema, estamos no Brasil, a terra do vale-tudo.
Prometer liquidar uma corrente ideológica é crime contra a democracia. Prometer mandar à prisão ou expulsar do País adversários ideológicos é crime contra a democracia. Prometer que a polícia terá salvo-conduto para aplicar a lei de forma implacável e seletiva é crime contra a democracia. Mentir porque é preciso vencer uma eleição tornou-se mais importante do que perder com dignidade e sendo verdadeiro e coerente. Não há problema, estamos no Brasil, a terra do vale-tudo.
Para que a vitória não escapasse entre os dedos, o agora ungido decidiu elevar o tom e o volume da ópera do ódio. No posfácio da campanha, carregou a dose de peçonha nos discursos eivados pela intransigência e pelo menoscabo, mas os efeitos colaterais exigiram mudança repentina de retórica para não espantar os indecisos.
No primeiro pronunciamento como eleito, o próximo presidente da República voltou a invocar o nome de Deus, ignorando um dos dez mandamentos, e prometeu respeito à Constituição. Na esquerda ou na direita, a pantomima vitoriosa não foge desse script embusteiro, que sempre traz um dossel para esconder as más intenções do preletor. Acreditar ou não nas palavras lançadas ao vento depende de cada um.
Ninguém muda as próprias crenças e convicções, presas à psique com o amálgama da intolerância, porque a transmutação definitiva assemelha-se a um torcionário incansável a castigar a consciência. Diante de objetivo maior e pré-estabelecido, agir como ardina de ocasião, à sombra de sub-reptícios, encaixa-se no aforismo às avessas “os fins justificam os meios”. A ordem é seguir adiante, pois a rampa palaciana está à espera.
Comportando-se como leguleio convicto, o que não é por vocação, o presidente eleito agiu como regente tanatopraxista que, enquanto aguarda o cadáver da liberdade para as devidas preparações funéreas, tenta transformar a ópera do ódio em réquiem para a democracia.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.