Exigir coerência dos políticos brasileiros é a mais hercúlea das tarefas, talvez seja missão impossível, como sempre afirmamos. Mesmo assim, algumas atitudes tomadas por certos políticos são verdadeiros atentados ao bom senso. E deveriam ser alvo de reação imediata e contundente da opinião pública por causa da postura dual de seus protagonistas.
Governador de São Paulo, João Doria Júnior, que abandonou a Prefeitura paulistana após quinze meses no cargo, é um desses políticos profissionais que não se incomodam com a incoerência. Aliás, Luiz Carlos Franco, ex-assessor de Doria na Paulistur, em 1985, afirmou recentemente em sua conta no Facebook que o governador paulista “é tão verdadeiro quanto nota de R$ 30,00, ou como o tingimento de seus cabelos ou o botox que andou aplicando”.
Semanas antes de abandonar a Prefeitura de São Paulo para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes, Doria foi tomado por um escândalo de corrupção no âmbito da PPP da Iluminação Pública da capital paulista, que o obrigou a demitir boa parte do staff do Departamento de Iluminação Pública (Ilume), sob pena de comprometer sua candidatura.
As provas levadas ao Ministério Público de São Paulo não deixam dúvidas a respeito do esquema de corrupção que existia para beneficiar um dos consórcios (FM Rodrigues-Consladel) participantes do processo licitatório, no valor de R$ 6,9 bilhões pelo período de vinte anos. Apesar da contundência do conjunto probatório e da autoincriminação de um dos protagonistas do esquema, o MP paulista decidiu arquivar a investigação sob a justificativa canhestra de inexistência de provas. Talvez os promotores do caso desconheçam a folclórica “cegueira da Justiça”.
Durante a tramitação do processo licitatório da PPP da Iluminação, inúmeras manobras foram adotadas pela Prefeitura de SP, com o conhecimento de João Doria, para favorecer a FM Rodrigues, que cuidava da manutenção da iluminação pública da maior cidade brasileira. Para tanto, o outro consórcio, Walks, foi desclassificado na esteira de uma enxurrada de interposição de recursos e alegações estapafúrdias e desprovidas de fundamentos jurídicos, o que ficará provado mais adiante.
O consórcio Walks – formado pelas empresas WPR Participações (WTorre), Quaatro Participações e KS Brasil LED Holding – apresentou proposta com valor menor, portanto mais vantajosa à municipalidade, mas a Prefeitura decidiu ao arrepio da lógica e do bom Direito que o vencedor era o consórcio liderado pela FM Rodrigues.
Segundo nota divulgada à época pela Prefeitura, “o Consórcio Walks foi excluído da licitação por ser integrado pela empresa Quaatro, controladora da Alumini, empresa declarada inidônea pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Esta decisão impede a empresa de participar de licitações nas três esferas de governo.”
Quando convém, políticos e seus asseclas são acometidos pela síndrome de interpretação de texto às avessas, pois o fato de a Quaatro controlar a Alumini não a torna inidônea, apenas porque sua controlada assim foi declarada pelo Ministério da Transparência.
Com a eclosão do escândalo de corrupção e as comprometedoras gravações carreadas aos autos, a Justiça paulista determinou, de chofre, a suspensão do contrato assinado pela Prefeitura com o consórcio vencedor e, ato contínuo, a respectiva anulação, determinando ao Executivo municipal a realização de nova licitação.
Para João Doria e Bruno Covas – este último sucedeu o agora governador na Prefeitura – a teoria dos “dois pesos e duas medidas” entra em cena de acordo com a conveniência.
Tomando como referência o escárnio ocorrido na PPP da Iluminação, não é errado concluir que Doria e Covas formam uma dupla de “Don Quixotes” tupiniquins contra a corrupção, sendo ambos avessos à participação de empresas suspeitas ou declaradas inidôneas em licitações públicas.
Olhos fechados na Prefeitura
Mas não é bem assim que acontece nos reinos de João Doria e de Bruno Covas. Na última segunda-feira (11), a construtora Construcap ofereceu lance de R$ 70,5 milhões para administrar, como concessionária, o Parque Ibirapuera. A proposta passará por análise técnica e a empresa vencedora da licitação terá de aceitar as determinações do Plano Diretor a ser elaborado para a área.
Nada de errado teria se a Construcap não figurasse na lista de empresas investigadas por corrupção no escopo da Operação Lava-Jato. Para piorar o cenário sobremaneira, em 2016 um dos donos da construtora, Roberto Capobianco, foi preso na Lava-Jato por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Em 2018, Capobianco foi condenado a 12 anos de prisão em regime fechado.
A denúncia que levou à condenação de Roberto Capobianco era a de que o Consórcio Novo Cenpes, do qual a Construcap participa, teria fraudado e superfaturado a licitação de construção do Cenpes, centro de pesquisa e desenvolvimento da Petrobras no Rio de Janeiro.
O Cenpes, criado em dezembro de 2007, contava também com participação das empreiteiras OAS, Carioca, Construbase e Schahin. O contrato com a estatal surgiu dois meses depois, em janeiro de 2008.
Foram condenados os operadores de propinas Roberto Trombeta, Rodrigo Morales e Alexandre Romano (Chambinho). Para este último, a Construcap realizou um repasse de pouco mais de 341 mil reais por meio da Construtora Ferreira Guedes. Entre 2007 e 2012, foram pagos a executivos da Petrobras e agentes políticos R$ 39 milhões em propina.
Mesmo assim, Bruno Covas, com o aval de Doria, não viu qualquer problema no fato de a Construcap participar do processo de licitação para gestão, manutenção e operação – em regime de concessão – do Parque Ibirapuera e outros cinco parques – Jacintho Alberto, Tenente Faria Lima, Jardim Felicidade, Eucaliptos e Lajeado.
Olhos fechados nos Bandeirantes
João Doria, que consentiu de maneira escandalosa com as seguidas manobras para desqualificar o consórcio Walks no âmbito da PPP da Iluminação Pública da cidade de São Paulo, parece ter mudado de ideia após acomodar-se na poltrona de governador.
Longe do falso moralismo que endossou a covardia perpetrada contra o Walks, Doria comemorou, também na última segunda-feira (11), a concessão da Linha 15-Prata do Metrô, por R$ 160 milhões, ao Grupo CCR, único interessado durante leilão realizado na sede da B3 (antiga BM&FBOVESPA). A outorga mínima era de R$ 159 milhões.
Após o leilão na B3, Doria falou sobre a ausência de mais proponentes: “É a regra, podem se apresentar uma, duas, três, quantas empresas desejarem. A regra é muito clara, tendo uma proposta ela é analisada como foi essa, ela é válida e ela é importante. O triste seria vazio, ou seja, estarmos todos aqui decepcionados pela falta de uma empresa com interesse na conclusão em uma linha tão importante quanto essa da Linha Prata do Metrô, se tivermos mais competidores, melhor, mas se tivermos sempre uma que assuma a responsabilidade de levar adiante e concluir a obra dentro do prazo e das condições propostas, assim será”.
Em novembro de 2018, a CCR firmou acordo de leniência com o Ministério Público de São Paulo para se livrar de processos contra a companhia e algumas de suas controladas, em decorrência de doações ilegais (caixa 2) a políticos do PSDB, PT, MDB, PTB e outras legendas.
No acordo, a CCR concordou em pagar multa no valor de R$ 81 milhões, sendo que R$ 17 milhões serão doados à biblioteca da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco. Caso o MP encontre futuramente provas de que houve corrupção, o acordo será desfeito.
Ora, se o consórcio Walks foi desclassificado do processo da PPP da Iluminação Pública de SP por causa de um preciosismo bisonho e de conveniência – emoldurado por birra pessoal para beneficiar um consórcio que fazia a alegria de alguns –, a mesma regra deveria valer para os casos da concessão dos parques paulistanos e da Linha 15-Prata do Metrô. A questão é que Doria e Covas não falam em pé o que escrevem sentado e vice-versa.
O eleitor paulista já percebeu o erro que foi eleger Doria. No caso de Bruno Covas, o abandono que tomou conta da cidade de São Paulo fala por si.