Néscio confesso, Bolsonaro diz que “golpe é quando a esquerda perde”, mas golpe não tem ideologia

Está cada vez mais difícil e desafiador saber o que pior e maior: a delinquência intelectual do presidente Jair Bolsonaro ou a subserviência tosca de seus apoiadores. Certo mesmo é que ambas as situações são movidas pelo revanchismo ideológico, cultuado por pessoas que não sabem viver em democracia e têm aversão ao contraditório.

Que parte dos brasileiros não consegue enxergar o óbvio e a realidade dos fatos o planeta está cansado de saber, pois afinal só vale aquilo que interessa à milícia virtual bolsonarista. Ao mesmo tempo, os integrantes da seita liderada por Jair Bolsonaro continuam acreditando que são os derradeiros gênios da raça, por isso suas afirmações devem ser acolhidas pelos adversários como mandamentos divinos. Isso tudo acompanhado de impropérios, xingamentos, destampatórios e outras tantas bizarrices discursivas.

De igual modo, todo brasileiro de bom senso já percebeu que Bolsonaro não escreve, sentado, aquilo que declara quando está em pé. Quando isso acontece, não demora muito para seu pensamento bizarro ser atropelado por assessores ou ele próprio é obrigado a se desdizer – muitas vezes recorre a desculpas fajutas e de conceito dual.

Em entrevista ao jornal “O Globo”, logo após a notícia da renúncia de Evo Morales, o presidente Bolsonaro declarou, embalado pelo ranço ideológico que cultiva: “A palavra golpe é usada muito quando a esquerda perde, né? Quando eles ganham, é legítimo. Quando eles perdem, é golpe. Eu não vou entrar nessa narrativa deles aí. A esquerda vai falar que houve golpe agora”.

Na tentativa de exalar um falso bom-mocismo, Bolsonaro disse que não considera positivo o que ocorreu na Bolívia. “Não é bom acontecer esse tipo de movimento. Eu sei que lá foi contra a esquerda, mas a gente não quer nem contra a esquerda nem contra a direita. A gente quer que, acabou, tem dúvida, vai lá e conta, abre a urna lá, o voto impresso e conta”.

Bolsonaro, de acordo com a Carta Magna, tem garantido o direito à livre manifestação do pensamento, que, sabem os brasileiros de bem, não é dos melhores nem concatenado, além de fugir repetidas vezes da realidade dos fatos.

O mandato de Evo Morales, ao qual ele renunciou, terminaria em 21 de janeiro de 2002, portanto sua interrupção tem de ser considerada um golpe cívico-militar, pois forças de segurança foram à televisão para anunciar, no domingo (10), que não se responsabilizariam por eventual derramamento de sangue no país vizinho. Ou seja, naquele momento deixaram de cumprir as ordens do presidente boliviano, que usando das prerrogativas do cargo tinha o dever de determinar a garantia da lei e da ordem.

Ora, se a eleição presidencial boliviana foi marcada por fraude e o então presidente Morales concordou, mesmo sob pressão, na realização de nova eleição, o movimento que levou à sua renúncia não pode ser classificado de outra maneira, se não como golpe. Goste-se ou não de Evo Morales e da ideologia socialista, a interrupção de um mandato eletivo será sempre golpe, exceto quando isso acontece à sombra do texto constitucional.


Isso posto, Bolsonaro deveria impor esforço extra à própria massa cinzenta para compreender que golpe é e sempre será golpe, não importando se o protagonismo é da direita e o alvo é a esquerda, ou vice-versa.

Durante anos a fio, o UCHO.INFO criticou duramente as manobras de Evo Morales para, alterando a Constituição boliviana, conseguir o direito de concorrer à reeleição. Essas incursões antidemocráticas do agora ex-presidente Morales sempre mereceram nossas críticas, assim como foram objeto de reunião entre o editor deste portal e o oposicionista boliviano Jorge “Tuto” Quiroga, que participou da recente e polêmica corrida presidencial no país sul-americano.

A eleição presidencial boliviana, em 20 de outubro passado, foi marcada por suspeitas das mais diversas e denúncias de fraude. A Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou indícios de fraude e sugeriu a realização de nova eleição para o Executivo boliviano, decisão encampada por Morales, que sabia desde o início das manobras criminosas que garantiram sua vitória no primeiro turno.

Na verdade, fraudes primeiras foram as alterações promovidas por Evo Morales na Constituição boliviana com o objetivo de garantir-lhe o direito de concorrer a um quarto mandato presidencial. Essas alterações no texto constitucional do país só foram possíveis porque o Movimento Socialismo (MAS), partido de Morales, controla dois terços do Parlamento boliviano. Se a incursão da OEA na eleição boliviana é considerada necessária e providencial, essa deveria ter ocorrido muito antes do pleito presidencial.

Enquanto a turba bolsonarista, embalada pelo pensamento détraqué do presidente da República, comemora a queda de Evo Morales, sem ao menos ter se manifestado por ocasião das alterações antidemocráticas na Constituição boliviana, a crise que eclodiu em La Paz e tomou conta do país sul-americano pode colocar a economia da região em compasso de espera, como informamos em matéria anterior.

Para quem não é refém das questões ideológicas e consome informação de qualidade e análise balizada, os protestos que ocorrem na Bolívia são um alerta para os investidores internacionais que sempre mantêm os olhares na direção da porção sul do continente americano. A exemplo do que ocorre no Chile, cujo governo agora sinaliza com a convocação de uma Assembleia Constituinte para conter os ânimos, os protestos podem atravessar fronteiras e ganhar outras nações.

Não fosse possível esse cenário de migração de protestos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em entrevista à jornalista Leda Nagle, jamais teria afirmado que diante de eventual radicalização da esquerda no Brasil a resposta seria a edição de um novo AI-5 (Ato Institucional nº 5), considerado até hoje o principal instrumento de repressão adotado durante a ditadura.

O AI-5 abriu caminho para o fechamento do Congresso Nacional, a retirada de direitos e garantias constitucionais, perseguição a jornalistas e militantes contrários ao regime, com direito a sessões de tortura, assassinatos e ocultação dos corpos de pessoas que foram classificadas como desaparecidas.