O que muda depois do Brexit?

O Reino Unido deixa a União Europeia (UE) à meia-noite (horário de Bruxelas) desta sexta-feira (31), pondo finalmente em prática a decisão tomada pela população britânica no referendo de junho de 2016.

Três anos e meio, dois premiês e incontáveis horas de negociações depois, a saída será, como queriam os dois lados, ordenada. Já neste sábado começa o período de transição, no qual os termos da nova relação serão definidos.

O que começa, portanto, é uma nova fase de negociações, que também prometem ser duras, já que os dois lados têm posições bem diferentes. Enquanto as negociações durarem, pouco muda na prática para os britânicos e também para os cidadãos da UE.

O que muda em 31 de janeiro de 2020?

Em primeiro lugar, os cidadãos britânicos não serão mais cidadãos da União Europeia a partir da meia-noite, pelo horário de Bruxelas, ou das 23h, pelo horário de Londres.

Do ponto de vista legal, o processo de saída da União Europeia previsto no artigo 50 estará encerrado e é irreversível. Se o Reino Unido quiser voltar, terá de se candidatar de novo e passar mais uma vez por todo o processo de ingresso.

No dia 1º de fevereiro começa um período de transição de 11 meses – ao menos em tese, pois no início de julho os dois lados vão avaliar se uma ampliação desse prazo, até o fim de 2021 ou de 2022, será necessária.

Diplomatas europeus argumentam que acordos comerciais não são fechados em alguns meses e, por isso, mais tempo será necessário. Mas o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, rejeita enfaticamente essa opção e diz que tudo estará pronto até o fim de 2020.

O período de transição servirá para regulamentar as relações entre o Reino Unido e a União Europeia. Durante essa nova fase de negociações, o Reino Unido terá que seguir as normas do bloco – para assim continuar dentro do mercado comum europeu e da união aduaneira –, mas não terá voz no Parlamento Europeu ou em qualquer outra instituição da UE, já que estará fora da UE.

Portanto, até o fim de 2020, o Reino Unido estará dentro do mercado comum europeu e da união aduaneira e terá, assim, também que contribuir com o orçamento da União Europeia.

Durante essa fase nada muda para os cidadãos dos dois lados. Britânicos poderão continuar trabalhando e estudando na UE, e os cidadãos da UE poderão fazer o mesmo no Reino Unido. As regras para viajar também continuam as mesmas.

O Reino Unido poderá começar negociações para acordos comerciais com outros países durante o período de transição, mas não poderá assiná-los. Isso provavelmente levará os outros países a esperarem o fim das negociações dos britânicos com a UE para saber que tipo de acordo sairá delas.

E o período de transição?

As equipes de negociadores dos dois lados estão agora se preparando para as novas negociações. Do lado da UE, a equipe liderada pelo francês Michel Barnier deverá ser aprovada em 25 de fevereiro. O lado britânico será representado pela equipe liderada por David Frost. As negociações deverão começar em 3 de março.

Boris Johnson quer fechar logo um acordo amplo, que inclua comércio e também segurança, dados, pesca, aviação civil, educação e outras áreas. Esse cenário parece pouco provável devido à ampla abrangência das negociações e também porque o premiê britânico quer se diferenciar o quanto puder das diretivas e normas da UE, enquanto a UE insiste que normas de concorrência e subsídios estatais sejam as mesmas dos dois lados.

Desde já, a questão da pesca promete ser conflituosa, pois pescadores franceses querem continuar tendo o direito de pescar nas águas britânicas, o que o Reino Unido quer impedir.

Diante disso, o mais provável é que saia um acordo comercial básico, que inclua sobretudo produtos e deixe de lado o setor de serviços, que é responsável por 80% da economia britânica.

Como comparação: UE e Canadá levaram sete anos para fechar o acordo de livre-comércio Ceta. As negociações da UE com o Mercosul duraram 20 anos.

E se não houver acordo ao final da transição?

Se UE e Reino Unido não fecharem um acordo até o fim de 2020 e não houver prorrogação do período de transição, Reino Unido e União Europeia passarão a fazer negócios pelos termos da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ou seja, os dois lados estarão sujeitos a tarifas alfandegárias, o que vale tanto para os produtos britânicos que forem importados pela UE como para os produtos que forem no sentido contrário. Isso é, obviamente, ruim para os dois lados, mas pior para o Reino Unido, que depende mais da UE do que o contrário.

Outra consequência das tarifas alfandegárias são as inspeções e controles de produtos nas fronteiras, o que pode gerar congestionamentos em portos, como Dover.

Um outro aspecto importante: como o acordo de saída prevê que não haverá controle aduaneiro entre as duas Irlandas, a ausência de um acordo após a transição implica que Inglaterra, Escócia e País de Gales enfrentarão tarifas se quiserem vender para a UE, mas a Irlanda do Norte não, se vender para a Irlanda e, por meio desta, para a UE.

Sem um acordo comercial após o período de transição, o setor de serviços do Reino Unido perderá o livre acesso ao mercado da UE, o que afeta sobretudo os bancos e o setor financeiro, mas também escritórios de advocacia e o setor de música, por exemplo.

E a fronteira entre as Irlandas?

A parte mais complicada do Brexit foi e continua sendo a questão das Irlandas. Depois do Brexit, a Irlanda do Norte, como parte integrante do Reino Unido, estará fora da União Europeia. A Irlanda continuará sendo um membro da UE.

O acordo fechado entre a UE e o Reino Unido prevê que, apesar disso, não haverá controles aduaneiros na fronteira entre as duas Irlandas. Para que isso seja possível, a Irlanda do Norte deverá continuar seguindo regras da UE em produtos manufaturados, agrícolas e alimentos, que assim terão livre trânsito entre as duas Irlandas. Os demais países do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e País de Gales, ou seja, a ilha da Grã-Bretanha) não estarão sujeitos a tal obrigação.

Mesmo seguindo regras da UE, a Irlanda do Norte continua dentro da área aduaneira britânica. Na prática, haverá uma “fronteira” no Mar da Irlanda, entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha, para o controle aduaneiro de produtos.

Esses controles serão feitos em “pontos de entrada” para a Irlanda do Norte, ou seja, em portos, onde as regras aduaneiras da UE continuarão valendo.

Produtos da Grã-Bretanha que forem para Irlanda do Norte estarão sujeitos a serem taxados, mas a taxação apenas será efetiva se eles seguirem adiante para a Irlanda (ou seja, para a UE). Do contrário, a cobrança da taxa poderá ser cancelada ou haverá restituição mais tarde.

Na prática, a aduana que deveria existir entre as duas Irlandas foi transferida de lugar e ficará entre a Grã-Bretanha e a ilha da Irlanda. (Deutsche Welle)