Os temporais pelo Brasil e o preocupante grau de imbecilização dos brasileiros

(*) Ucho Haddad

Não tenho culpa se vim ao mundo com uma capacidade de pensar acima da média, o que não me faz melhor do que ninguém. De igual modo não sou culpado pelo grau de imbecilização do brasileiro, que, esteja onde estiver, acredita ser o último gênio da raça, o derradeiro herdeiro de Aladim. Desde a minha estreia no jornalismo – lá se vão mais de quatro décadas – alerto para alguns pontos que o pensamento mediano da população não consegue compreender. Por conta disso sempre fui rotulado como comunista, esquerdista e outros quetais. Se pensar de maneira lógica é esquerdismo, sou o mais radical deles. No momento em que o Brasil enfrenta açoites da direita burra, esse tipo de zombaria é elogio.

Sou do tempo da São Paulo da garoa, cidade que há muito deixou de existir, apenas porque a especulação imobiliária e o urbanismo de camelô deram as mãos. Não é de hoje que falo sobre o elevado índice de impermeabilidade da maior cidade brasileira, assim como protesto contra a ocupação desordenada do território da Pauliceia Desvairada. Se não é asfalto, é cimento, e vice-versa. Naquele tempo, a água caía do céu, infiltrava no solo, evaporava, chegava às nuvens, caía de novo… Agora, a água, quando do céu despenca, não tem para onde correr, a não ser para os rios que margeiam e cortam a cidade. Acontece que a estupidez humana fez com que a população ocupasse, com a aquiescência das autoridades, qualquer nesga de terra, inclusive a área de várzea dos rios. Para quem não sabe, a várzea serve para abrigar momentaneamente as águas de um rio que sai de seu volume normal em razão das chuvas, seja no próprio local ou na cabeceira.

Não consigo ficar calado diante do escárnio. Protesto de qualquer maneira, mesmo que esteja só. Minha família passou a dizer, há alguns anos, que estou cada vez mais ranzinza. Dizem que o fato de ter mais de 60 anos – estou a caminho dos 62 – me fez intolerante. Ora, se pensar na direção do óbvio é sinal de intolerância, quero morrer intolerante e ranzinza. Se tem algo que me irrita profundamente é a figura do especialista. Considerando que o Brasil é uma usina de especialistas em todos os assuntos, não preciso destacar o quanto fico irritado e por quanto tempo.

Para mim, especialista é aquele imbecil metido a gênio que entra em desespero quando, por exemplo, a torneira da pia da cozinha para de funcionar. Ele apanha o celular, procura um aplicativo qualquer que dê um jeito na maldita da torneira e constata que de fato é um néscio, um zé ninguém, um inútil. Mesmo assim, guarda esse episódio para si, pois da porta de casa para fora precisa continuar posando de gênio da lâmpada maravilhosa, porque do contrário há de acabar no divã do analista da esquina mais próxima. Se é que já não frequenta. Nada contra quem recorre ao analista para resolver seus conflitos existenciais, até porque corajoso é quem busca ajuda, mas que pelo menos reconheça as próprias fraquezas em vez de bancar o tal.

A cidade de São Paulo amanheceu nesta segunda-feira, 10 de janeiro de 2020, debaixo d’água, como se fosse a versão tupiniquim e mal-acabada de Veneza. Carro virou gôndola, gente saiu nadando. Quem sentou-se ao volante não chegou ao destino, pois relatos apontam que pessoas estão paradas no trânsito há mais de dez horas.

Quem deve ser responsabilizado pela tragédia surge em cena com alegações estapafúrdias, carregando a tiracolo a desculpa de sempre: a culpa é de São Pedro. E o cidadão aceita essa balela com impressionante passividade, como se de fato a culpa fosse de Pedro, o senhor das águas celestiais. Ninguém é devorado por uma carga tributária escorchante para ver um santo no tribunal, quando no patíbulo deveriam estar os governantes que ludibriam a opinião pública o tempo todo. Na esteira dessas delinquências discursivas surgem as estatísticas torpes divulgadas pela imprensa, como se isso amenizasse o calvário imposto ao cidadão.

Que o brasileiro pouca importância dá às questões da política estou cansado de saber, mas a esperança é a última que morre. E começo a perceber que ela, a esperança, está na UTI e em fase terminal. Uma coisa é não ter interesse pelas questões políticas, outra é deixar o barco à deriva. Há dias, ouvi de pessoa próxima que pouco importa o que acontece na política e o que decidem os políticos, pois nada disso interfere na sua vida. Respondi que aparentemente não interfere, mas em algum momento o caos se fará presente.

Reconheço a dificuldade de fazer jornalismo sério, ético e independente em um país cuja população é preguiçosa e prefere as facilidades (sic) do totalitarismo a ter trabalho para viver sob o manto da democracia. Creem esses obtusos cidadãos que os ditadores são os governantes ideais porque entregam tudo pronto e de mão beijada. Continuem acreditando nessa besteira para ver onde acaba a fábula.

Causa-me nojo e náusea ver a grande imprensa lucrar aos bolhões noticiando tragédias, sem ao menos se dedicar, após o caos, à cobrança de soluções para os problemas que continuarão existindo. O ser humano acostumou-se a consumir tragédias como forma de amenizar os efeitos colaterais das próprias dificuldades, mas é necessário que esse quadro seja mudado com urgência, antes que o calvário alcance o status de padrão de vida.

A maior cidade brasileira precisou parar, literalmente, para que o Brasil parasse de vez, ou quase isso. Muitos negócios adiados, aulas suspensas, viagens canceladas, reuniões remarcadas, braços cruzados, objetos perdidos, esperança na enxurrada. Dentro de alguns dias a vida voltará ao normal, dentro da anormalidade de sempre, pois a imbecilização do brasileiro inverteu a ordem de valores.

Quem circula por São Paulo com frequência e conhece a cidade a miúde, como eu, sabe, não é de hoje, que a tragédia dessa fatídica segunda-feira já era anunciada, portanto, esperada. Nas ruas há acúmulo de lixo por todas as partes. No raiar de cada dia é possível constatar o quanto a sociedade paulistana é imbecil, pois o lixo das madrugadas de embalos está por todos os cantos, inclusive impedindo o escoamento das águas celestiais.

Porém, deixo um aviso aos navegantes, literalmente falando. Esperem pelo pior, pois em breve entrarão na avenida os bloquinhos de carnaval e seus alucinados e porcos seguidores, que deixam um rastro de imundice sem precedentes. São Paulo recicla no máximo 5% do lixo que produz, índice vergonhoso se considerado o contingente de desempregados e a persistência da crise econômica. O que poderia acabar no bolso de quem precisa está a entupir os bueiros. Em suma, os que acreditam ser gênios não passam de imbecis, que perdem a fantasia na primeira chuva mais forte.

Cada um leva a vida como quer, até porque o Brasil ainda é uma democracia, mas voltar as costas para a política há muito deixou de ser questão de comodismo. É sinal de burrice em dose desmedida. Tomo por base os recentes estragos provocados por temporais em somente três grandes cidades do País e suas respectivas regiões metropolitanas: Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.

Durante anos a fio, o governo federal contou com uma pasta batizada pomposamente com o nome de Ministério das Cidades. Por certo o brasileiro não se deu conta disso nem sabe até então para que servia esse ministério. Como jornalista político, sempre afirmei que tratava-se de mais um nicho canhestro para abrigar políticos e apaniguados, todos especialistas em avançar sobre o dinheiro público. Em outras palavras, corruptos contumazes. O que fez o Ministério das Cidades ao longo desses anos todos, a não ser lançar projetos populistas e pirotécnicos que permitiram a roubalheira?

Como se mantra fosse, ajo em consonância com o meu pensamento, com as minhas pregações, mesmo que solitárias. De modo algum defendo o discurso “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, já que entendo ser esse um modo rasteiro de querer dar ordens e se eximir da culpa pelos próprios atos. Continuarei sendo ranzinza, possivelmente cada vez mais, pois só sei pensar na direção da lógica e movido pela coerência. Os que me acusam de ser comunista, esquerdista e outros adjetivos mais, que o façam à vontade, porque de fato me desconhecem. Sempre lembrando que de imbecis estou cansado. E salve-se quem puder na Veneza tupiniquim!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.

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