O coronavirus e as viagens e hospedagens: os direitos envolvidos

(*) Rizzatto Nunes

Escrevo para tratar dos efeitos jurídicos nas relações de consumo por conta da Pandemia gerada pelo Covid-19, especialmente no que respeita às viagens aéreas, hospedagens, passeios agendados etc.

Começo tratando do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo – que, diga-se, não lhe pertence – e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração.

O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar.

Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.

O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II).

Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa).

Acontece que, no que respeita ao transporte, o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte:

“Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”.

Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno.

Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de hospedagem, para os pacotes de viagem etc.

Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar.

Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso de certas ocorrências da natureza, tais como chuvas e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno – que, aliás, ocorre constantemente — é integrante típico do risco daquele negócio.

Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como está da Covid-19.

Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas.

Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos. ´

Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar a companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor.

Da mesma forma, se dá com o cancelamento que o consumidor faça em hotéis e outras atividades atreladas à viagem afetada pela circunstância excepcional. Não pode o hotel ou os demais agentes cobrarem multas por mudanças de datas e devem devolver os eventuais valores já adiantados acaso haja cancelamento definitivo pelo consumidor.

Sei que há outros argumentos a favor do consumidor como, por exemplo, o de referência ao inciso V do art. 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Tudo bem. É mais um argumento favorável, mas penso que a constatação da existência de um caso fortuito externo que atinge a relação jurídica de consumo como um todo é suficiente para resolver a situação.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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