(*) Ucho Haddad
Ainda criança, percebi minha simpatia por situações arriscadas. Muitas foram as vezes que ultrapassei a fronteira do perigo, como se o bom-senso não existisse. Quiçá naquela época o bom-senso nada representasse para mim. De todos os momentos de risco guardo lições que serviram de alicerce para a vida. Das vezes em que usei os braços da minha mãe e da minha avó para balançar em pleno trânsito das ruas centrais de São Paulo aos atentados terroristas que enfrentei – passando por terremotos, furacões e outros quetais –, guardo lembranças e ensinamentos.
Talvez por essa razão tenha escolhido o ofício de jornalista, que no Brasil, assim com em muitos países, é empreitada para poucos e corajosos. Não me refiro ao jornalismo morno e malemolente que se amedronta diante da realidade dos fatos, mas ao jornalismo compromissado com a verdade e que não se curva diante dos poderosos.
Ao longo da carreira, assim como na infância, inúmeras foram as ocasiões em que me deparei com o inusitado, com o risco, o que exigiu decisão rápida, apesar das incertezas que se desenhavam no horizonte. Tudo ou nada. E sempre apostei no tudo, porque o nada não me seduz.
Há 40 anos, em 2 de agosto de 1980, aprendi que o melhor é ouvir a voz do coração. Voltava de Firenze para Milão, mas na estação ferroviária de Bologna mudei de ideia e decidi ficar na cidade para desfrutar de uma das mais viciantes culinárias regionais italianas. Em suma, além do coração, ouvi o protesto do estômago.
Por alguns instantes questionei minha decisão de parar em Bologna, mas minutos depois percebi que ficar na cidade foi a melhor escolha. Desse momento guardo na memória uma imagem e um som impossíveis de esquecer. Deixei o trem que me levaria a Milão, onde morava, para mergulhar na gastronomia local. Desci e caminhei na direção da saída da estação, mas tive o cuidado de olhar para trás e ver o comboio deixando a plataforma e seguindo rumo a Chiasso, na Suíça, destino final daquela viagem que começara em Ancona, na costa do Mar Adriático.
No lado de fora da estação, curvei o dorso para colocar bagagens e os pesados equipamentos de trabalho no chão e fazer sinal para o táxi, mas esse movimento não se completou. Como se algo tivesse interrompido o ato corporal e me paralisado. Um barulho enorme ainda ecoa na memória. O trem em que viajava deixou a estação e explodiu em um túnel logo a seguir, alvo de atentado do grupo terrorista “Nuclei Armati Rivoluzionari” (Núcleo Armado Revolucionário). Conhecida como “Massacre de Bologna”, a tragédia deixou 85 mortos e mais de 200 feridos. Por razões óbvias não aproveitei a gastronomia da cidade, que tanto me agrada. Escapei, mas chorei.
Depois desse episódio, ainda na década de 80, teimando em perambular na seara do risco, aceitei participar da investigação do escândalo financeiro envolvendo o Istituto per le Opere Religiose (IOR), também conhecido como Banco do Vaticano, a máfia turca e a loja maçônica P2. O imbróglio culminou, anos mais tarde, com o atentado ao Papa João Paulo II, na Praça São Pedro, mas antes teve a misteriosa morte do antecessor João Paulo I (Albino Luciani), que ficou apenas 33 dias no comando da Igreja Católica. Todos capítulos de uma novela bandoleira que sempre agitou os intramuros da Santa Sé. Confesso que aquela foi uma das mais intrigantes e perigosas investigações jornalísticas da carreira, que em dado momento me obrigou a deixar a Itália às pressas para não cair nas mãos de mafiosos e matadores profissionais.
Entre idas e vindas, com direito a incursões em vários destinos, enfrentei, em nome da profissão, situações inusitadas, sempre carregando o risco e a ousadia a tiracolo. Investiguei corruptos e “lavadores de dinheiro” mundo afora, sem jamais recuar diante de ameaças. De quebra passei por furacões e terremotos, acreditando firmemente que o final sempre é positivo. Até porque, resiliência é meu sobrenome.
Esse coquetel do perigo deveria ter me transformado em um ser humano frio e calculista, pois afinal não há como investigar criminosos valendo-se de doçura e compaixão. Durante décadas acreditei que essa transformação era algo consolidado, mas hoje, 4 de agosto de 2020, percebi que isso não é verdade suprema. Hoje, chorei por Beirute, chorei pelo Líbano. Choro enquanto escrevo, ouvindo sem parar a música “Li Beirut”, na voz comovente de Nahoud Wadie’ Haddad, a Fayrouz.
A explosão na zona portuária de Beirute, que deixou até o momento 78 mortos e 4 mil feridos, conseguiu paralisar o pensamento e proporcionar uma sensação de desprezo em relação àqueles que, na sombra de um mandato político, deveriam cuidar da população, mas não o fazem porque os interesses espúrios são maiores e prementes, porque a disputas ideológicas e religiosas dominam a cena, porque a briga pelo poder rege o desenrolar dos dias.
Congelei porque sou humano, porque parte da minha história familiar está no Líbano, está em Beirute. Congelei porque o raio não deveria cair várias vezes no mesmo lugar, porque um povo tão solidário não merece enfrentar tantas tragédias, principalmente quando o Líbano vive uma grave crise econômica, que espalha a miséria e faz mais ricos os poderosos que se engalfinham. Congelei porque não consigo compreender a estupidez do homem.
Ao ver as imagens da explosão no porto de Beirute, por onde circulei algumas vezes na companhia de parentes que em priscas eras trabalharam nas docas da capital libanesa, fiquei paralisado. De maneira simultânea voltei na linha do tempo. Foi uma viagem de 53 anos, até junho de 1967, quando ocorreu a “Guerra dos Seis Dias”. Deitado na cama do Hotel Saint George, destruído durante a Guerra Civil do Líbano (1975-1990) por ataques e bombardeios, ouvia música árabe. A exemplo do que faço agora de forma persistente, como mencionei anteriormente, para aplacar minha tristeza.
Assustada, mas sem deixar transparecer nervosismo, minha saudosa mãe disse-me que era preciso ir embora com urgência, mas não explicou o motivo. Disse também que um carro estava à nossa espera na porta do hotel para levar-nos ao aeroporto de Beirute. Fomos obrigados a fugir do Líbano por causa da iminência de um ataque aéreo por parte dos envolvidos no conflito (Egito, Iraque, Israel e Jordânia).
Instantes após a decolagem, sentado na poltrona junto à janela do avião, tive a resposta da pergunta que não fiz à minha mãe enquanto às pressas arrumávamos as malas para deixar Beirute. Do céu, sobrevoando o Mediterrâneo, vi os rolos de fumaça que brotavam do solo e mostraram-me que a terra que deu origem à minha família estava debaixo de um bombardeio, em especial na parte sul do país. Aquela imagem ainda guardo na memória, emoldurada pela profunda tristeza que tomou conta de um menino de apenas 8 anos, que chorou em silêncio com o nariz emplastado na janela do avião. Depois disso, viajei calado e reflexivo, como calado e reflexivo sou até hoje.
Passados 53 anos daquele fatídico e inesquecível dia, a mesma tristeza profunda tirou de cena o jornalista que sempre ultrapassou a barreira do perigo em busca da notícia. Aposentei a frieza que em boa parte do tempo me fez companhia no exercício da profissão que escolhi, dando lugar à emoção, à indignação. Chorei! Ainda choro em silêncio pelo Líbano. Choro por Beirute e por todos que vivem na cidade que tão bem me acolheu, que tão bem acolhe a todos. Choro por um país que tem a solidariedade no cardápio do cotidiano. Choro porque voltei no tempo, choro porque não há como deter o inconcebível. Choro ouvindo “Li Beirut”, na voz magistral de Fayrouz. Força Líbano, força Beirute! Salaam Aleikum, Lübnãn!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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