Nada pode se mais delinquente em termos intelectuais do que a anunciada proposta de criação de uma frente política de centro para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro na eleição de 2022. O ex-juiz Sérgio Moro e o apresentador Luciano Huck encontraram-se em Curitiba, em 30 de outubro, para discutir a formação da tal frente, como se ambos fossem politicamente de centro.
Moro, como se sabe, é um radical de direita que, à frente da Operação Lava-Jato, atropelou a legislação vigente no País para condenar integrantes da esquerda e, ato contínuo, pavimentar o caminho para suas ambições políticas. Não se trata de defender corruptos, de direita ou de esquerda, mas de exigir a aplicação da lei dentro dos próprios limites e respeitando o Estado de Direito.
Além disso, Moro endossou o discurso ultrarradical e totalitarista de Jair Bolsonaro, de cujo governo foi despejado por tentar acenar à banda menos alucinada dos que defendem o combate à corrupção. Afirmar que Sérgio Moro é de centro é misto de devaneio com ignorância política.
Em relação a Luciano Huck, o apresentador é um incontestável representante da direita, que tenta vender a imagem de socialdemocrata na esteira do sucesso de seu programa televisivo. Imaginar que Huck é de centro é algo tão irresponsável quanto afirmar que o seu “Caldeirão” é uma extrusora de benemerências. Na verdade, o programa é um escárnio bem produzido que explora de maneira escandalosa a tragédia social que se instalou no País há décadas.
A proposta torna-se ainda mais temerária quando enxertam no projeto o nome de João Dória Júnior, governador de São Paulo, que de centro nada tem e jamais teve. Dória elegeu-se prefeito da capital paulista abusando da inocência política do então governador Geraldo Alckmin, a quem traiu de forma repugnante, e chegou ao comando da mais importante unidade da federação a reboque do discurso tosco e autoritário de Bolsonaro, com quem passou a rivalizar a partir do momento em que externou seu interesse pela principal cadeira do Palácio do Planalto.
Muitos integrantes da elite brasileira começam a ver com bons olhos as conversas iniciais entre Moro, Huck e Dória, mas é importante salientar que o trio representa o que há de pior em termos de atraso. Alguém há de alegar que é preciso oxigenar a política brasileira com os chamados “outsiders”, mas ninguém deve se enganar com essa fórmula canhestra que beneficia os privilegiados de sempre.
Ultrapassa os limites da irresponsabilidade imaginar que a oxigenação da política é possível a partir do ingresso de “caras novas”, sem os vícios de sempre. Em que pese a necessidade de renovação, o problema da política brasileira não está nos atores de sempre, mas naqueles que fazem do mandato eletivo um atalho para a corrupção. Apostar em inexperientes como forma de mudança é passar recibo tolo.
A conferir… Sérgio Moro, que muitos o tem como versão de camelô de Don Quixote, deveria ter sido coerente e pedido demissão do governo Bolsonaro tão logo o presidente da República transferiu o Coaf para o Ministério da Economia, no afã de blindar o filho Flávio Bolsonaro, protagonista das “rachadinhas”. Deveria ter abandonado o cargo de ministro da Justiça quando Bolsonaro confirmou o nome de Onyx Lorenzoni para a chefia da Casa Civil, hoje à frente do Ministério da Cidadania. Sem falar no ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, dono do “laranjal mineiro”. E Moro se calou diante desses escândalos, porque, além de radical de direita, aprendeu o jogo sujo da política.
Em relação a João Dória, seu falso bom-mocismo não convence. Aliás, o governador de fato do estado de São Paulo é Rodrigo Garcia, pois o titular se preocupa com ações de marketing, não com governança. A maneira como o governo de SP lidou com a pandemia do novo coronavírus precisa ser reconhecida pela eficácia, mas isso só ocorreu porque no horizonte há o interesse de Dória em disputar a Presidência em 2022. O mesmo aconteceu em relação À vacina contra a Covid-19, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butatan.
Aliás, se João Dória fosse representante do “centro” e ferrenho defensor do combate à corrupção, como anuncia-se, teria tomado providências, enquanto prefeito, para conter o escândalo que envolveu a Parceria Público-Provada da Iluminação na maior cidade brasileira. Denúncias de corrupção e irregularidades foram noticiadas à exaustão, mas o então prefeito Dória só tomou uma atitude depois que o escândalo veio à tona. Para piorar, abrigou no governo estadual alguns personagens do escândalo de corrupção que emoldurou a PPP da Iluminação Pública e chacoalhou a prefeitura paulistana.
Quanto a Luciano Huck, que ninguém se iluda com a sua destreza no palco do Caldeirão, pois no Brasil a governabilidade se conquista à sombra de conchavos e escambos criminoso, a exemplo do que vem ocorrendo com Bolsonaro, que se elegeu a reboque de um discurso moralista e de combate ao que chamou de “velha política”. Além disso, o planeta já percebeu que apresentador de televisão que ingressa na política é prefácio da tragédia – os americanos que o digam. Não obstante, se a democracia brasileira não pode dar espaço aos bandoleiros da política, muito menos aos paraquedistas de plantão.
Acomodada em termos políticos, a população acostumou-se com a coisa pronta e a promessa fácil, como se a história não apontasse na direção contrária. Se a enorme e potente lupa que a pandemia colocou sobre a tragédia social que reina no País não conseguiu despertar os brasileiros para a dura realidade, o melhor é jogar a toalha e entregar nas mãos do Criador. Somente alguém desprovido de responsabilidade é capaz de apoiar uma frente político-eleitoral que reúne Sérgio Moro, Luciano Huck e João Dória, mesmo que barrar o autoritarismo de Bolsonaro seja algo urgente.
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