(*) Ucho Haddad
Nunca antes vi tanta gente disparando salamaleques na direção do ano novo, como se a vida e a realidade mudassem com a virada do calendário. A extensa maioria quer esquecer 2020 por causa da pandemia e seus efeitos colaterais – internações hospitalares, perda de pessoas queridas, impossibilidade de sair, de circular livremente e de consumir de forma tresloucada. Mas lições, por mais duras que sejam, não devem ser atiradas ao léu. E 2020 foi uma baita e inesquecível lição.
Confesso que se por um lado nada espero de extraordinário de 2021, a não ser aquilo que depender da minha ação, por outro não demonizo o ano que se encerra, apesar de todas as agruras. Como sempre afirmei e repito – e assim continuarei fazendo –, sou o melhor produto dos meus próprios erros, das dificuldades que enfrentei e dos desafios com que me deparei.
Desse cenário saí vivo e faceiro, menos despreparado. Até porque, como cantou Roberto Carlos, “é preciso saber viver”. E quem não souber está frito. “Quem espera que a vida seja feita de ilusão pode até ficar maluco ou viver na solidão. É preciso ter cuidado pra mais tarde não sofrer”, vociferou o “Rei”.
Alguns podem dizer que trata-se de conformismo ou compassividade de minha parte, mas lembro que sempre fiz e faço do cotidiano uma escola sem fim. Aliás, se há algo que quero fazer até o último suspiro, aprender sempre e melhorar a cada instante estão no topo da lista.
O ano que se despede, sob os apupos de muitos, foi de valoroso aprendizado, pelo menos para mim. Descobri que jamais estive errado ao pensar no próximo, ao ser parcimonioso diante dos embates e ao aceitar as provocações da vida com coragem e galhardia. Descobri nesses agitados meses – e ao mesmo tempo modorrentos – que a superficialidade do ser humano é muito mais extensa do que imaginava. E chego a essa conclusão com larga dose de tristeza.
A pandemia colocou uma enorme e potente lupa sobre a tragédia social em que vivemos, mas finge-se que nada pode ser mudado. Essa complacência burra e preguiçosa com o status quo causa-me indignação, engulho. Em tempos outros, irritava-me facilmente com tanta mesquinhez e ignorância, hoje aceito a ideia de que o ser humano é egoísta e míope em relação à realidade da vida, em relação ao próximo. Algo como “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Compreendo que a necessidade de sobrevivência não tem limite, o que leva cada um ao terreno da pequenez d’alma, mas se a existência humana fosse verbo, a conjugação deveria acontecer apenas na primeira pessoa do plural. Mesmo que seja para dar com os burros n’água, que erremos juntos, de mãos dadas, tentando mudar. Afinal, mudar é preciso.
Dizem por aí que o ser humano é igual em dois momentos: no nascimento e na morte. Imaginei que a pandemia pudesse funcionar como a derradeira régua para nivelar o ser humano, pelo menos no quesito da coerência. Frustrei-me! O ser humano (sic) é literalmente incompreensível. Cansei de tentar entender.
Afirmam os ignaros que meu modo de pensar e de existir é típico de comunista, mas se pensar no próximo e no seu bem-estar é sinal de abdução pelo comunismo, então ora sou foice, ora sou martelo. E dane-se quem pensar o que quiser a meu respeito. Aliás, aviso aos maledicentes que minha consciência está bem perto da tranquilidade. Afinal, durmo como criança e desperto como titã, sempre embalado pela coerência.
Nos últimos tempos, sob recorrentes críticas familiares, tenho repetido algumas poucas frases que traduzem o meu modo de pensar e ver o mundo. Digo que o meu tempo no campo terreno acabou, pois não me vejo inserido nesse pandemônio que dança ao som do “faz de conta”. A família xinga (no bom sentido), diz que estou louco, mas sei que dentro dessa sadia loucura tenho razão. Outras vezes externo meu desejo de morar na Lua, literalmente – não é coisa de maluco beleza –, pois ao menos teria a chance de não me decepcionar com aqueles que se dizem humanos. Porém, em pelo menos um quesito a família concorda comigo: “isso aqui não vai dar certo”.
Nesses quase dez meses de isolamento imposto por um inimigo até então desconhecido, ouvi pessoas reclamando insistentemente da impossibilidade, pero no mucho, de sair e viver o que alegam ser normal. Talvez o melhor seria substituir normal por possível, como acontece diariamente. O isolamento foi uma enorme oportunidade para cada um se conhecer e se analisar, mas foram mais de trezentos dias perdidos com reclamações, lamúrias, estupidez e outros quetais na seara da ignorância.
Logo no início da pandemia propus, em forma de projeto, um bate-papo com profissionais de empresas em que explicaria os prós e os contras do isolamento. Isso porque se há no planeta quem entende de isolamento, um deles certamente sou eu. O isolamento soou-me como valsa. Quem recebeu o projeto não conseguiu compreender a extensão da proposta. Quem poderia abraçar o projeto só pensou em reduzir despesas e manter os lucros, ignorando os efeitos danosos de uma parada repentina e forçada. Sequer pensaram na fortuna que seria se todos conseguissem atravessar o maremoto como se navegassem em águas calmas, delas saindo melhores como seres humanos e mais preparados como profissionais. Paciência!
Um dos meu poetas prediletos, o português Fernando Pessoa certa feita escreveu: “A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”. Tomando como referência o que escreveu o maior de todos os literatos lusos, a pandemia mostrou que o ser humano é escravo de si próprio, de um sistema que leva a lugar nenhum. O ser humano continua acreditando ser o umbigo uma piscina olímpica, onde apenas ele pode nadar de braçadas. Paciência, de novo!
Há muito iniciei um processo de regressão profissional, retornando com maior ímpeto ao ofício de origem, a fotografia. Não abandonarei de vez o jornalismo, mas a essa altura da vida dar murro em ponta de faca não está no meu cardápio. Até aqui fiz a minha parte (bem-feita, por sinal), em nome do Brasil e dos brasileiros, mas a partir de agora os que chegam ao mundo dos escribas devem assumir suas responsabilidades e, pena em punho, lutar por um País melhor e mais justo para todos.
Durante esse período de isolamento e incertezas – muitas ainda perduram – descobri que a vida tornou-se ainda mais disforme, o homem exibiu sua mesquinhez, sempre debaixo da cangalha do política e socialmente correto, mas isso tudo foi como choro no último capítulo da novela: bastam alguns segundos para secar.
Esse cenário levou-me a revisitar a obra-prima de um querido, saudoso e extremamente talentoso amigo, Zé Rodrix, que em 1988 produziu um jingle para o capítulo brasileiro da General Motors – estará sempre entre os melhores. Em determinado trecho do jingle, Zé canta: “Enquanto o mundo perde a forma, eu me encontro em mim…”
Assim foi na minha vida o ano de 2020, que todos querem esquecer, jogar no lixo, apagar da memória. Enquanto o mundo perdia sua forma, eu me encontrava em mim mais uma vez. Feliz ano, feliz sempre, feliz todo dia, feliz de novo, feliz como for possível. Feliz!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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