História para entender o presente

(*) Gisele Leite

A Constituição Federal brasileira de 1937 foi a nossa quarta Constituição, sendo a terceira na era republicana. Sua alcunha era de “Polaca” por trazer leis e disposições de forte inspiração fascista tal qual a Carta Magna da Polônia de 1935. O texto fora elaborado pelo juris Francisco Campo, alcunhado de Chico Ciência, e outorgada em 10 de novembro de 1937.

Para compreendermos mesmo o autoritarismo que se inaugurou a partir de 1937 (i) com a Polaca é preciso retroceder até 1934, quando surgiu no Brasil certa organização política de caráter fascista denominada Ação Integralista Brasileira (AIB) e, na época, o comando estava com Plínio Salgado, que era político e intelectual e, suas propostas era de um Estado forte, governo autoritário e sociedade militarizada que foram inspirações oriundas dos governos nazifascistas da Europa (ii).

Como de hábito, nos regimes totalitários, reina o nacionalismo e, os membros da AIB se vestiam com camisas verdes e se cumprimentavam com o braço direito em riste e gritando a palavra indígena anauê, que significava uma saudação afetiva, literalmente: você é meu irmão!

Em 1935 surgiu uma reação ao integralismo formada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) composta por comunistas, socialistas e líderes sindicais que desejavam o governo popular, a proteção aos pequenos proprietários, a nacionalização das empresas estrangeiras, entre outras coisas.

E, diante disso, pouco tempo depois, e ainda sob a influência de classes mais conservadoras, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Segurança Nacional. O que serviu de respaldo jurídico para permitir que Vargas viesse a fechar a ANL e, assim, tentou reagir através de levante armado denominado Intentona Comunista que falhou devido a baixa adesão de seus membros.

Em reação ainda ao levante, Vargas decretou o estado de sítio e a Polícia Especial iniciou uma repressão sistemática e violenta. E, desde então, quaisquer elementos que oferecessem resistência ao governo, além dos comunistas foram perseguidos, presos e, não raramente, torturados e mortos.

Em setembro de 1937 os jornais noticiaram que o Exército descobrira um plano comunista para a tomada do poder, forjada por um militar integralista, era o Plano Cohen pelo qual os ativistas e comunistas nos dias seguintes, incendiariam igrejas, desrespeitariam os lares, promoveriam greves e massacrariam líderes políticos. Com essa acusação e argumentando que era indispensável defender a liberdade, Vargas instalou a ditadura do Estado Novo. Assim, desferiu o golpe, fechando o Congresso Nacional e anunciando no rádio o “nascer da nova era”.

Cumpre reproduzir a lição do historiador Hélio Silva: todos os golpes se parecem.

Entre as características da Polaca estava a submissão do Poder Judiciário ao Poder Executivo que aliás, se fazia presente e onipotente, nos três níveis, no Congresso Nacional, nas Assembleias Estaduais e até nas Câmaras Municipais. Além de prever ampla liberdade de ação à Polícia Especial. Houve a eliminação do direito de greve e, a reintrodução da pena de morte. E, os Estados-membros eram governados por interventores nomeados por Vargas.

A Polaca oferecia amplo respaldo legal para o regime autoritário tupiniquim e, significa um franco retrocesso e, comparada com o texto constitucional anterior, em termos de democracia e respeito aos direitos humanos. É bom apontar os crimes e perseguições aos opositores ao regime e, mesmo quando terminou, ficaram impunes.

Após a queda de Vargas e o fim do Estado Novo em outubro de 1945, foram realizadas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em pleito paralelo à eleição presidencial. Eleita a Constituinte, seus membros se reuniram para elaborar o novo texto constitucional, que entrou em vigor a partir de setembro de 1946, substituindo a Carta de 1937.

Depois de passada a euforia com oito anos de ditadura, em 2 de dezembro de 1945 foram eleitos os constituintes e o Presidente da República. Enfim, somente com a queda de Vargas se teve certeza da realização das eleições. Mas, pairava no ar o medo de novamente ocorrer o que se deu em 1937.

Tanto que o estado de emergência fora somente revogado apenas em 30 de novembro, há dois dias antes do pleito. Diante do estado de emergência, a campanha eleitoral era mero simulacro.

Finalmente promulgada, a Constituição de 1946 trouxe brevíssimo preâmbulo e os constituintes registraram que estiveram “reunidos sob a proteção de Deus”. Numa redação distinta a da Carta de 1934, que cogitava “em nossa confiança em Deus”.

Alguns constituintes da época eram contrários, e ainda, apontava que nem a Constituição do Vaticano, em seu preâmbulo mencionava Deus. Alguns, em vez de proteção, achavam melhor pôr implorando a benção de Deus. E, outros preferiam “invocando a proteção de Deus”. E, os mais radicais ainda consideravam indispensável haver a referência à Santíssima Trindade.

A Constituição brasileira de 1946 foi a mais extensa e, manteve a denominação de Estados Unidos do Brasil, tal qual as três Constituições anteriores, dedicou-se especialmente ao Legislativo. O artigo 78 estipulou que “o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República” e, fora recriada a Vice-Presidência. E, o mandato fora estabelecido em cinco anos, pela primeira vez. Pois em 1891 e 1834 era de quatro anos e, em 1937 era de seis anos.

A Constituição de 1946 voltou a dar importância ao Judiciário, retomando a justiça federal, através dos Tribunais Federais de Recursos. Somente em 1967, restaura-se integralmente a justiça federal. Além disso, não havia de fato independência, pois o Judiciário não tinha autonomia financeira.

Em quase 132 anos de República brasileira, contando com 36 presidentes, somente um terço destes, ou seja, doze fora eleito diretamente e cumpriu integralmente o mandato. E, de 1926 até os dias de hoje, a proporção ainda é menor, pois dentre 25 presidentes, apenas 5 foram eleitos pelo voto popular e permaneceram no posto até o fim, a saber: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Lula, FHC e Dilma (primeiro mandato).

E Dilma Rousseff passou, em 2016, a integrar outro restrito clube, juntamente com outros seis, e são estes: Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Carlos Luz, João Goulart e Fernando Collor.

A curta história da democracia brasileira conta com episódios de democracia de fachada. Oficialmente, a República brasileira fora proclamada em 15 de novembro de 1889, quando finalmente se encerrou o período imperial, iniciado em 1822. Observa-se que ao longo da história do país, nem sempre a democracia prevaleceu. Temos certo pejo por ditaduras, eleições suprimidas ou suspensas ou indiretas e cassações políticas.

Apenas cinco presidentes da República eleitos completaram seus mandatos em noventa anos, o que perfaz e confirma a natureza frágil de nossa incipiente democracia.

A contemporânea fase de nossa democracia ora iniciada apenas após a abertura política cujo ápice fora a primeira eleição presidencial ocorrida em 1989, com o fim de eleições indiretas que prevaleceram durante toda a ditadura militar.

A vitória do Centrão não acena definitivamente que o atual Presidente da República não corra sérios riscos pois cada promessa feita é uma pesada dívida que se não honrada, o levará ao impeachment, principalmente porque deu razões sólidas o suficiente para tanto.

Referências
(i) Depois da crise, a maior desta a de 1929, provocada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, intensificou-se a perda de confiança no liberalismo. A intervenção estatal passou a ser vista, então, como a grande solução para o retorno à estabilidade do sistema capitalista. Com isso, mesmo nos Estados Unidos, onde não houve ditadura, o Estado também se fortaleceu: Franklin D. Roosevelt acumulou quatro mandatos (1933-1945). Sob seu governo, o Estado interveio fortemente para solucionar a crise – essas medidas intervencionistas ficaram conhecidas como New Deal. O Estado Novo de Vargas deve ser visto dentro dessa perspectiva.

(ii) Em primeiro lugar, é preciso destacar a conjuntura política internacional. Na década de 1920, diversos países europeus enfrentaram uma grande crise econômica em decorrência dos danos sofridos em seus parques industriais na Primeira Guerra Mundial. Essa crise permitiu a subida ao poder de governos autoritários que prometiam soluções de curto prazo, caso de Mussolini na Itália. Entre vários outros exemplos, Hitler chegou ao poder na Alemanha, Salazar em Portugal e, depois de uma guerra civil, Franco assumiu na Espanha.

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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