Ruy Barbosa, se ainda vivesse, já teria “perdido a cabeça” com os rompantes antidemocráticos de Bolsonaro

 
(*) Waldir Maranhão

O Brasil vive um momento perigoso quando no tocante ao respeito à democracia e à preservação da das instituições do Estado. Esse cenário é resultante das seguidas crises que o presidente Jair Bolsonaro gera para camuflar o descrédito do governo e a própria impopularidade, que não para de crescer.

O jurista Ruy Barbosa, se vivo estivesse, por certo já teria enquadrado Bolsonaro, que insiste em ameaçar o Estado de Direito como forma de estender a própria sobrevivência no campo político.

O grande jurista brasileiro, o nosso “Águia de Haia”, disse certa feita: ““As leis são um freio para os crimes públicos – a religião para os crimes secretos.”

A decisão do presidente de não comparecer à Polícia Federal, na última semana, para prestar depoimento no inquérito que apura vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral, em 2018, é mais uma tentativa desesperada de salvar um projeto de reeleição que está em processo de desmoronamento.

Bolsonaro, em carta enviada à PF, alegou que exerceu o direito de faltar ao depoimento. Isso se deu após fracassadas manobras da Advocacia-Geral da União, que, em cima da hora, recorreu ao STF para desobrigar o presidente de prestar depoimento.

Todo cidadão tem garantido o direito de não produzir provas contra si, como estabelece a Constituição no artigo 5º (inciso LXIII) e a legislação internacional, ou seja, o réu ou investigado pode permanecer em silêncio durante depoimento para evitar a autoincriminação. Trata-se do princípio “nemo tenetur se detegere”, consagrado no mundo jurídico.

Ressalto que há flagrante diferença entre permanecer em silêncio durante oitiva e se recusar a comparecer diante da autoridade responsável pelo inquérito. Enquanto a primeira situação é um direito do investigado, a segunda configura crime de desobediência.

No meio jurídico há uma máxima que preconiza ser a ordem judicial passível de recurso, mas antes de tudo deve ser cumprida. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, relator do caso, recebeu por parte da AGU a confirmação, no final de novembro de 2021, que Bolsonaro prestaria depoimento, cabendo o direito de escolher hora e local.

Esse direito de que goza o presidente da República vale apenas quando não se trata de investigado, mas de testemunha. Portanto, a alegação de que Bolsonaro não precisava comparecer à PF é nula.

Além disso, o prazo para apresentação de recurso, no caso um agravo, cessou no início de dezembro, quando cumpridos os cinco dias após a manifestação da AGU ao Supremo.

Quem conhece Bolsonaro sabe que tudo não passou de uma estratégia duplamente mal engendrada. O primeiro passo do plano palaciano era desafiar o Judiciário, reabrindo a crise institucional que há muito vem açoitando a democracia e o Estado de Direito. Nesse mesmo ponto é preciso destacar que a Bolsonaro interessa eleitoralmente esse embate covarde e desnecessário.

O segundo passo da estratégia oficial foi apostar em uma reação do ministro Alexandre de Moraes, que a qualquer momento pode determinar a condução coercitiva do presidente da República. Caso isso ocorra, Bolsonaro terá munição para entoar novamente o discurso de que é vítima das instituições e que “joga dentro das quatro linhas da Constituição”.

A condução coercitiva, tecnicamente conhecida como “condução sob vara”, está prevista em lei e a depender do cenário pode produzir efeitos positivos ou negativos ao investigado.

O ministro Alexandre de Moraes, após rejeitar recurso da AGU em favor do presidente, manteve o depoimento à Polícia Federal, ou seja, Bolsonaro continuar descumprindo a lei e desafiando o Judiciário. Por outro lado, o STF não cairá na armadilha que Bolsonaro montou na Praça dos Três Poderes. Resumindo, o chefe do Executivo ficará sem essa narrativa, a não ser que o quadro se agrave.

Em 2021, nas comemorações do Sete de Setembro, Bolsonaro, em ato na Avenida Paulista, em São Paulo, disse aos seus apoiadores que não mais cumpriria determinações judiciais de Alexandre de Moraes, a quem chamou de “canalha”.

Ex-chefe da Secretaria de Governo da Presidência, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, em entrevista concedida à revista IstoÉ, disse que Bolsonaro é “criminoso, covarde e traidor”.

“Bolsonaro sempre foi covarde. É uma característica dele. Um momento em que isso ficou perceptível foi no Sete de Setembro, quando o presidente fez um chamamento popular, uma bravata absurda na Avenida Paulista. Pouco tempo depois, chamou outra pessoa para escrever meia página para se desculpar”, declarou Santos Cruz.

Ao assumir o cargo de presidente da República, Bolsonaro assumiu o compromisso, sob promessa de cumprir integralmente a Constituição, sendo que ao STF cabe o dever de defendê-la em todas as situações, a começar pelos ataques de fanáticos pelo golpismo.

O exemplo que Jair Bolsonaro deu à população é o pior possível, pois deu a entender que decisão judicial só deve ser cumprida quando o investigado ou réu tiver disposição para isso ou interesse no ato em si. Caso a descabida atitude do presidente se transforme em regra, o Brasil dará largos passos ao que se conhece como desobediência civil.

Tomo como exemplo o caso do ex-presidente Lula, que não faltou às audiências relacionadas às ações penais da Operação Lava-Jato. Não se trata de fazer juízo de valor de um ou de outro, mas de destacar o cumprimento da lei e da ordem judicial. Aliás, Lula foi conduzido coercitivamente para depor, em São Paulo, sem ao menos ter sido citado pela autoridade judicial.

A condução coercitiva, ou sob vara, é possível quando, após duas tentativas de intimação, o investigado não responde à ordem judicial. A legislação é clara nesse sentido. No caso de Bolsonaro, ele consentiu em depor e, por meio da AGU, informou que definiria hora e local do depoimento, prerrogativa do presidente da República, lembro, quando não está na condição de investigado.

A Polícia Federal, que conduz o inquérito sobre o vazamento de dados sigilosos, confirmou, em relatório enviado ao STF, que Bolsonaro agiu intencionalmente e ciente de que estava violando a lei. A delegada responsável pelo caso afirmou no documento que Bolsonaro cometeu crime.

Para concluir, volto ao grande Ruy Barbosa: “Toda a capacidade dos nossos estadistas se esvai na intriga, na astúcia, na cabala, na vingança, na inveja, na condescendência com o abuso, na salvação das aparências, no desleixo do futuro.”

(*) Waldir Maranhão – Médico veterinário e ex-reitor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde lecionou durante anos, foi deputado federal, 1º vice-presidente e presidente da Câmara dos Deputados.

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