Evasão de divisas: nova modalidade envolve imóveis no exterior superavaliados e financiamentos suspeitos

 

“Esperteza, quando é muita, come o dono.” (Tancredo de Almeida Neves)

Em passado não tão distante, enviar dinheiro para fora do Brasil era ilegal, mas isso acontecia com muita frequência, através do chamado “mercado negro” de dólar. Doleiros recebiam valores em moeda nacional e, de forma automática, disponibilizavam o equivalente no exterior.

Nos primórdios das chamadas “operações de cabo” os interessados precisavam se deslocar ao escritório do doleiro, normalmente uma fortaleza em termos de segurança, entregar em moeda nacional o valor a ser remetido e acertar a taxa de câmbio. Um ou dois dias depois o valor estava disponível no local combinado, na maioria das vezes e com frequência nos Estados Unidos.

Esse mercado ilegal de remessa de dólar foi se sofisticando, ao ponto de doleiros conhecidos terem se tornado protagonistas de escândalos de corrupção envolvendo muitos políticos brasileiros. Como exemplo é possível citar Antonio de Oliveira Claramunt, conhecido como Tonino da Barcelona, Alberto Youssef, um dos pivôs do Petrolão, e Dario Messer, o “doleiro dos doleiros”. Todos tinham uma rede de atuação, com “discípulos” que se encarregavam de pulverizar as operações.

Aparente legalidade

Em dado momento, com o cerco das autoridades, o trabalho dos doleiros ficou mais difícil, até que os “criativos” surgiram em cena com um novo método, aparentemente legal, para enviar valores ao exterior. Tratava-se de operações de comércio exterior – importação e exportação – fictícias, com os documentos necessários disponibilizados expedidos pelos respectivos órgãos do governo federal.

Em dada ocasião, um dos doleiros que passaram a operar nesse sistema foi descoberto no rastro de uma investigação e o caso acabou em delegacia de polícia da capital paulista. Para não ser preso, o protagonista do crime, que comandava uma badalada rede de casas de câmbio, todas oficiais, teve de desembolsar algo em torno de US$ 400 mil, valor que serviu para aplacar a volúpia dos investigadores e seus superiores.

Contas CC-5 e Banestado

Na sequência, em 1999, surgiu o escândalo das chamadas contas CC5, previstas na carta circular nº 5 Banco Central do Brasil, editada em 1969, e que regulamentava as contas em moeda nacional mantidas no País por residentes no exterior. Atualmente, as disposições sobre tais contas constam do título VII da Circular 3.691, de 16 de dezembro de 2013.

O maior escândalo financeiro do Brasil permitiu que US$ 125 bilhões fossem retirados do País sem o pagamento dos devidos impostos. No rastro do imbróglio das CC5, o Banco do Estado do Paraná (Banestado) foi à “débâcle” e os créditos da instituição financeira foram comprados por “fundos abutres” por valores irrisórios, talvez acintosos.

Repatriação de valores

Em 2016, uma lei aprovada no Congresso Nacional – Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) – permitiu que brasileiros que cometeram o crime de evasão de divisas repatriassem os valores depositados no exterior, com direito a benefícios fiscais e anistia criminal. Estima-se que a medida facilitou o retorno de US$ 175 bilhões ao País, seno que nessa operação o governo engordou o caixa com R$ 51 bilhões (valor da época).

Remeter dinheiro ao exterior, desde que declarado aos órgãos competentes, não configura crime, mas a citada lei teve um lado sombrio. Aqueles que enviaram dinheiro ao exterior legalmente acabaram desembolsando muito mais do que cometeram o crime de evasão de divisas e foram beneficiados com a repatriação de valores não declarados.

Nova oportunidade?

Enquanto a pandemia do novo coronavírus avançava sem cerimônia por todos os quadrantes do Brasil e a CPI da Covid inquiria e investigava envolvidos em escândalos sobre a compra de medicamentos para combater a doença, o Senado federal analisava a possibilidade de “ressuscitar” a repatriação de recursos que escaparam à vigilância do Fisco.

Apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o projeto de lei visa aumentar a arrecadação do governo federal, que acumula um déficit primário histórico de R$ 759,5 bilhões por conta dos gastos exigidos pela maior crise sanitária dos últimos cem anos.

“Diante deste cenário incerto e da atual conjuntura econômica, tão penalizada pela pandemia da covid-19, é razoável admitir a concessão de prazo para novas adesões ao RERCT, tendo em vista, especialmente, a importante arrecadação de valores que a reabertura do prazo possibilitará em tempos de grave crise financeira no país”, justifica o projeto de autoria de Pacheco.

Especialista do mercado de câmbio destacam alguns fatores que podem incentivar a adesão ao novo programa de repatriação de valores (RERCT). Passados mais de quatro anos do último RERCT, a impossibilidade de muitos brasileiros usarem ativos (como imóveis) no exterior durante a pandemia e a alta do dólar – em 2017 estava perto de R$ 3,20 e, agora, é negociado por volta de R$ 5,16.

Representantes de bancos estrangeiros

No entremeio desses episódios, surgiram alguns oportunistas oferecendo facilidades de todos os naipes. Representantes de bancos estrangeiros desembarcavam no Brasil quase que diariamente para visitar clientes endinheirados nas principais cidades do País.

O objetivo era não apenas uma visita de cortesia aos clientes, mas captar novos investimentos e organizar a remessas de valores de forma ilegal, operações que contavam com a atuação de doleiros de “confiança”. As autoridades sabiam da presença dos representantes de bancos estrangeiros em território nacional, mas nada fizeram para impedir um crime que foi cometido durante mais de uma década.

Banco do Vaticano

Nesse tablado que abrigava adeptos da evasão de divisas, representantes de bancos internacionais e doleiros especializados em “operações de cabo” surgiu um personagem folclórico que oferecia a abertura de contas no sisudo “L’Istituto per le opere di religione” (Instituto para obras de religião), conhecido pelo acrônimo IOR e também como Banco do Vaticano.

O IOR esteve no centro do escândalo que sacudiu a Santa Sé quando foi descoberta a operação que envolveu uma loja maçônica, agentes financeiros, mafiosos diversos, traficantes de drogas e especialistas em lavagens de capitais. Alguns dos envolvidos foram condenados, outros acabaram se suicidando. O episódio culminou com o assassinato do Papa João Paulo I (Albino Luciani), conhecido como Papa Sorriso e que ficou apenas 33 dias no comando da Santa Sé. Luciani tentou ‘colocar ordem na casa”, mas acabou morrendo após tomar uma chávena de chá contendo cianureto. Não por acaso, seu sucessor, o papa João Paulo II (Karol Wojtyla), acabou baleado na Praça São Pedro, em Roma, por Mehmet Ali Agca, que tinha ligações com a máfia turca.

Offshores e paraísos fiscais

Os recentes escândalos Panamá Papers e Pandora Papers revelaram que brasileiros continuaram enviando enviado valores ao exterior de forma ilegal, valendo-se muitas vezes do ardil das chamadas companhias offshores.

Deter e controlar uma offshore não é crime, desde que declaradas às autoridades brasileiras. O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, tiveram seus nomes destacados no Pandora Papers como donos de offshores. Ambos alegaram ter informado às autoridades a existência das empresas em paraísos fiscais.

 
Evasão de divisas através do esporte

Voltando no tempo… Em dado período, a remessa ilegal de valores se dava no campo do esporte. Era comum, mas anormal, a venda de jogadores de futebol, por exemplo, usando uma estrutura fiscal que envolvia empresas offshore e outras artimanhas. O mesmo acontecia no automobilismo, mas nesse caso com patrocínio de empresas brasileiras.

No final dos anos 90, o editor do UCHO.INFO ouviu, de alguns pilotos, em Miami, relatos sobre o esquema criminoso que consistia na elaboração de contrato de patrocínio com direito à devolução de boa parte (70%) do valor aportado na equipe de automobilismo ou no próprio competidor.

Atuação internacional

Com as autoridades cada vez mais atentas a essas modalidades de remessa de valores, instituições financeiras internacionais passaram a intensificar a oferta de serviços como, por exemplo, investimentos no mercado acionário e em fundos e gestão de fortuna. Destacam-se nesse nicho do mercado bancos pequenos e originários de países da América Latina, como é o caso do BAC Florida Bank, recentemente vendido. No BAC, que nasceu em um país conhecido pela produção de rum, é bem recebido pela direção da instituição o agente hipotecário Seth Nachman, dono da empresa “Eastern Financial Mortgages” e com vasto rol de clientes brasileiros.

Não se trata de fazer juízo de valor ou de afirmar que tais instituições financeiras operam no exterior no campo das ilicitudes, mas a essa altura a Receita Federal e o Banco Central já devem estar monitorando o novo modus operandi.

Há também casos de bancos brasileiros que abriram filiais ou instituições financeiras correspondentes no exterior, como o Delta Bank, com sede em Miami, fundado em 1986 pelo respeitado e zeloso banqueiro Aloysio Faria (ex-dono do Banco Real) – já falecido – com o intuito de administrar grandes fortunas. O Delta oferecia a clientes brasileiros a oportunidade de investir valores nos Estados Unidos, longe dos riscos dos planos econômicos que marcaram um longo período da história brasileira.

Fora da lei

Em outro ponto do universo dos “private banks”, o Banco Rural, que ganhou notoriedade no escândalo do Mensalão e acabou fechando as portas (liquidação judicial), foi multado por sua relação com o Trade Link Bank, sediado nas Ilhas Cayman, conhecido paraíso fiscal. Na verdade, o Trade Link era um braço do Rural no exterior.

Outro caso semelhante foi descoberto no vácuo da Operação Satiagraha, posteriormente anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), beneficiando os alvos das investigações da Polícia Federal.

Um fundo de investimentos aberto nas Ilhas Cayman por um conhecido banqueiro administrava os recursos de empresários e políticos brasileiros. O editor teve acesso à lista de clientes e foi alvo de represálias truculentas de parlamentares, que se incomodaram com nossa investigação.

Inovação no crime

Entrou na mira das autoridades brasileiras e é alvo de investigação jornalística deste portal de notícias um novo método para, burlando a legislação nacional, remeter valores ilegalmente ao exterior, mas com suposta aura de legalidade. Trata-se da aquisição de imóveis nos Estados Unidos, em especial no estado da Flórida, conhecida como paraíso dos brasileiros, através de financiamentos de longo prazo.

O processo vale-se de uma teia de profissionais dos mercados financeiro e imobiliário, com direito a corretores de imóveis, intermediadores de financiamentos e hipotecas (mortgages), agiotas e representantes de pequenos bancos.

A operação consiste em avaliar um determinado imóvel acima do valor do mercado imobiliário local, o que em tese justifica a remessa de valor equivalente ao exterior acima do necessário para a aquisição do bem.

Após a avaliação, o intermediário da hipoteca entra em ação para conseguir um financiamento, que pode chegar a 30 anos, que em alguns casos é fictício. Afinal, se o promitente comprador do imóvel remete o valor referente à transação ao exterior é descabida a hipoteca.

Acontece que o valor remetido passa a ser investido no mercado financeiro (bolsa de valores e fundos de investimentos), cujos rendimentos ultrapassam as taxas de juro dos financiamentos imobiliários. Com isso, o comprador do imóvel passa a gozar de vantagem financeira, ao mesmo tempo em que desfruta de imóvel em uma cidade, no caso Miami e seu entorno, extremamente aprazível.

Outra modalidade nesse mesmo cenário é a remessa de valor condizente à avaliação turbinada de determinado imóvel, com direito à devolução da diferença entre o montante avaliado e o real preço do imóvel. Nesse jogo de “ganha-ganha” todos embolsam algum valor, polpudos ou não, dependo do caso e da participação de cada um no processo.

Alguns dos protagonistas dessa nova forma de evasão de divisas a partir do Brasil costumam externar sinais de riqueza, frequentando festas disputadas e locais badalados, sem importarem com a lupa da lei.

Modo reverso

No contraponto, quando a operação de hipoteca sofre algum revés, ou seja, ocorre o atraso no pagamento das parcelas do financiamento imobiliário, o agente hipotecário, em conluio com agiotas e corretores de imóveis, entra em cena para levar ao patíbulo aqueles que, acreditando na esperteza, apostaram em um sistema ilícito e voraz.

Os membros do conluio dirigem-se à instituição financeira que realizou a hipoteca, onde têm livre trânsito pelo volume de negócios que realizam, e adquirem a dívida com substancial deságio. Em suma, um roteiro sórdido com ares de legalidade e benfazejo.

Crime nas duas pontas

Esse tipo de operação é considerado crime tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Porém, na terra do Tio Sam, onde a lei é dura e o Judiciário é pragmático, as penas podem ser pesadas.

Que nenhum banqueiro brasileiro mais afoito arrisque entrar nessa ciranda da ilegalidade, até porque, como afirmou o escritor e romancista francês Henri-Marie Beyle (1783-1842), popularmente conhecido como Stendhal, “todas as religiões são fundadas sobre o temor de muitos e a esperteza de poucos”.

Ressaltamos mais uma vez que nosso intuito não é acusar instituições financeiras brasileiras que atuam no mercado internacional presencialmente, mas alertar para o perigo que representa a armadilha criada por alguns adeptos do lucro fácil e rápido.

A grande questão que se apresenta é alguns fazem da esperteza uma profissão de fé. Lembrando que autoridades brasileiras e o UCHO.INFO já encontraram a ponta do emaranhado novelo.

Aos navegantes

Alguns, como sempre, dirão que a presente matéria é fruto de especulação, mas lembramos que ao longo dos anos, no exercício do jornalismo, investigamos o fatídico Dossiê Cayman, ajudamos a decifrar o escândalo do Mensalão, fomos responsáveis pelas primeiras denúncias que levaram às investigações do caso conhecido como Petrolão, abrimos caminho para a Operação Satiagraha, desvendamos as relações entre Eurico Miranda, então presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama, com o Bank of America, denunciamos o esquema de corrupção que marcou o processo licitatório da PPP da Iluminação Pública da Cidade de São Paulo, entre outras tantas denúncias, todas reconhecidas publicamente, inclusive no Congresso Nacional. Em suma, não nos faltam experiência e faro para identificar e investigar o que foge à legalidade.

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