Tendo o Direito romano como base, o Direito brasileiro algumas vezes é surpreendido com decisões judiciais marcadas pela chamada “hermenêutica”, filosofia que estuda a teoria da interpretação. Isso faz com que o País tenha decisões judiciais díspares no escopo de casos semelhantes, talvez idênticos.
Em 18 de fevereiro passado, publicamos matéria sobre os maus tratos sofridos por uma criança portadora de Transtorno de Espectro Autista (TEA) em escola particular de São Luís, no Maranhão.
O corpo diretor da instituição de ensino, uma das mais caras e renomadas do estado, inicialmente se esquivou diante das denúncias de que a jovem “P.A.M.S.R.” sofrera violência física (beliscões, tapa no rosto e pisões nos pés) e moral por parte de professores. Segundo relato da vítima, confirmado pelas autoridades locais, as professoras beliscavam a garota, desferiam tapas no seu rosto e pisavam nos pés, além de chamá-la de “idiota”.
Depois de muita insistência da mãe e da avó da jovem, a escola atendeu parcialmente um pedido de fornecimento dos registros das câmeras de segurança, pois apenas as imagens em que as professoras não apareciam foram fornecidas.
Os familiares de “P.A.M.S.R.” solicitaram uma reunião com a direção da escola e as professoras, ocasião em que a instituição formularia um pedido de desculpas, o que significa reconhecer o abuso, e se comprometeria em adotar práticas para evitar que casos semelhantes se repetissem na escola. A instituição educacional rejeitou a proposta.
No Maranhão, assim como ocorre em muitos estados da federação, prevalece a teoria “quem pode mais, chora menos”, cenário absurdo que não encontra espaço em regimes democráticos nem tem abrigo na Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º (caput) estabelece que “todos são iguais perante alei sem distinção de qualquer natureza”.
Como destacou o escritor George Orwell no romance satírico “A Revolução dos Bichos” (ou “Triunfo dos Porcos”), “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Em outras palavras, uma minoria acredita que manda a esmo, enquanto a maioria obedece sem poder reagir, pois a estrutura do Estado existe para beneficiar quem pode mais ou, como queira, os “donos do poder”, seja político ou econômico.
Caso de polícia ou de política?
O caso, por razões óbvias, acabou na delegacia, onde supostamente ocorreu algo anormal, mas que tornou-se comum nessa barafunda chamada Brasil: tráfico de influência. A autoridade policial decidiu de chofre registrar o caso como “crime de menor potencial ofensivo”, situação que contraria a legislação vigente e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Diante do escárnio, a família de “P.A.M.S.R.” decidiu contestar a decisão da autoridade policial, que mais tarde, possivelmente pressionada, optou por registrar o caso como “contravenção”. No universo jurídico, a contravenção é considerada como “transgressão de dispositivos estabelecidos em regulamentos, contratos ou leis.”
No campo do Direito Penal, a contravenção consiste em infração penal de baixa gravidade, um “delito menor”. Traduzindo, a autoridade policial limitou-se a substituir a nomenclatura, já que “contravenção penal” e “crime de menor potencial ofensivo” são sinônimos. Apenas quem é movido pela má vontade não consegue enxergar uma situação emoldurada pela obscuridade.
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Além da Polícia Civil, que teve postura questionável diante de um caso de considerável gravidade, receberam formalmente a denúncia o Ministério Público do Estado do Maranhão (MP-MA), a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CEPD), o Conselho Tutelar, a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), o Conselho Estadual de Educação (CEE), o Conselho Municipal de Educação (CME) de São Luís, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) e o Fundo de Emergência Internacional da Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
O MP-MA lavrou termo circunstanciado de ocorrência pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), sendo o caso encaminhado ao Juizado Especial Criminal.
No último dia 14 de março, uma audiência no Juizado Especial Criminal foi realizada na tentativa de acordo entre as partes, mas os familiares de “P.A.M.S.R.” rejeitaram a proposta, já que anteriormente a direção da escola se recusou a qualquer tipo de entendimento, usando de evasivas para fugir à responsabilidade. A família tomou a decisão mais acertada, na opinião do UCHO.INFO.
Voltando à hermenêutica
Insistimos na tese de que o “bamboleio interpretativo” das leis vigentes no País, aliado ao congraçamento entre apaniguados, leva a decisões judiciais incompreensíveis e que muitas vezes prejudicam o mais fraco.
Na cidade de São Paulo, um caso semelhante de maus tratos a crianças em estabelecimento de ensino teve um desfecho diferente. A Justiça paulista decretou, na última segunda-feira (21), a prisão temporária da diretora da escola infantil particular da Zona Leste de São Paulo investigada por suspeita de maus-tratos, periclitação de vida, que é colocar a saúde das crianças em risco, submissão delas a vexame ou constrangimento e tortura.
A Polícia Civil e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) pediram a prisão de Roberta Regina Rossi Serme, 40 anos, diretora e uma das proprietárias da Escola de Educação Infantil Colmeia Mágica, na Vila Formosa. Fundada em 2002, a escola atende crianças 0 a 5 anos, do berçário ao ensino infantil.
O caso em que “P.A.M.S.R.” é vítima de agressão física e psicológica em concorrida escola da capital maranhense é semelhante ao ocorrido no estabelecimento educacional da cidade de São Paulo. Essa ambiguidade de posturas das autoridades de ambos os estados nos obriga a pensar que a legislação é diferente em cada unidade da federação, as interpretações da lei são antagônicas ou alguém mostrou disposição para proteger um “poderoso”, ignorando os direitos de uma criança portadora de Transtorno de Espectro Autista.
A Escola Crescimento foi palco de outro caso de agressão psicológica. Um jovem, filho de autoridade do governo do Maranhão, tem sido alvo de gordofobia, sem que a escola tenha tomado as necessárias providências para evitar a prática de bullying. O UCHO.INFO acompanha com proximidade o caso em questão.
Providências adotadas
A família da jovem “P.A.M.S.R.” tomou uma série de providências, através de advogados, assim que constatou os hematomas decorrentes das agressões físicas sofridas pela vítima e dos reflexos do assédio moral.
As citadas providências tornam-se públicas com a presente matéria jornalística (clique aqui), com a autorização da família, pois entendemos que a sociedade ludovicense precisa tomar conhecimento do que acontece nos intramuros da Escola Crescimento.
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