Carnaval de Crises

(*) Gisele Leite

A crise institucional convulsiona o país, vivenciamos o embate entre os Poderes da República. O que nos faz recordar diversos textos antigos.

O Rei Salomão já vaticinara: “Não há nada de novo sob o sol”. Há mais de dois mil anos verificou-se o mar de paradoxos contendo mentiras e verdades e protagonistas cujas biografias ora os colocam como vilões ou santos.

Significativa é a mensagem das Catilinárias do senador, jurista, escritor e orador romano Marco Túlio Cícero. A efervescência de experiências político-religiosas já trazia busilis infindáveis.

Cícero foi contra Catilina, um senador populista com nítida vocação a ditador, pois ansioso por acumular todo o poder valendo dos plebeus a quem tentava perdoar todas as dívidas. Desmascarou-o com suas famosas Catilinárias, cujos ecos ainda se podem ouvir hoje.

Nas palavras iniciais: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência” gritou para o plenário do Senado Romano contra seu adversário. Por quanto tempo ainda há de zombar de nós a tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia desenfreada?”

“Nem os temores do povo, nem a confluência dos homens honestos, neste local protegido do Senado, nem a expressão do voto destas pessoas, nada consegue te perturbar? Não percebes que teus planos foram descobertos? Não vês que tua conspiração foi dominada pelos que a conhecem? Quem, entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?

O tempora, o mores! (Oh, tempos, oh, costumes!).”

O decreto presidencial indultando Daniel Silveira da recente condenação sofrida na Ação Penal nº 1.044, pelo Plenário do STF por 10 a 1 votos, significa o primeiro passo para o Golpe de Estado. Rasga-se todos os ritos procedimentais, normas constitucionais e, mais, a necessidade de se respeitar a interdependência dos três Poderes da República.

O “L’État c’est moi”, frase atribuída a Luís XIV, o Rei-Sol (“Le Roi Soleil”) acenando o espírito de total centralização do poder parecer imbuir o espírito do atual Presidente da República.

Curial frisar o teor da Súmula 631 do STJ: “O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”.

Portanto, o referido deputado federal não estará imune de futura cassação e, quiçá, da futura perda de direitos políticos, que o torna inelegível para a vindoura eleição.

Ademais o indulto padece de inconstitucionalidade pois equivale anulação de processo judicial, que nem tem decisão transitada em julgado. Portanto, até lá Silveira não é tecnicamente condenado.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, apresentou recurso ao STF para que reconheça que caberia aos parlamentares decidir sobre perdas de mandato e não ao Judiciário.

Nas redes sociais, juristas e políticos começaram a se manifestar logo após a concessão do polêmico indulto a Daniel Silveira. É um abuso de poder presidencial a concessão da graça, afirmou o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas Cláudio Couto em seu perfil no Twitter.

Convém destacar que cabe ao Judiciário o controle sobre a concessão do indulto presidencial, e o STF já estabeleceu ser cabível tal controle judicial, inclusive sobre sua razoabilidade. E poderá anular indulto quando for inconstitucional. Em tempo, o controle judicial não analisa o mérito, mas pode analisar sua falta de coerência, razoabilidade e inconstitucionalidades formais.

Certamente, o decreto presidencial será questionado legalmente e passará pelo crivo da Suprema Corte. E, qualquer ação protocolada questionando a medida deve ser distribuída por prevenção ao Ministro Alexandre de Moraes, relator da referida Ação Penal que tramita contra o parlamentar na Corte.

A tendência é que o decreto seja considerado inconstitucional, e ainda que o decreto seja válido, a inelegibilidade permanece, pois não tem natureza penal. Para uma corrente dentro da Suprema Corte, independentemente da validade ou não do indulto, não poderá candidatar-se.

O Senador Randolfe Rodrigues anunciou em suas redes sociais que irá questionar o decreto de Bolsonaro pois afirmou que os crimes contra a ordem constitucional não podem ser passíveis deste benefício (artigo 5º, XLIV) e iremos ao STF para derrubar esse desmando por meio de uma ADPF.

Lembremos que, em 2018, o Ministro Luís Roberto Barroso suspendeu um indulto de Natal concedido pelo Presidente Michel Temer a condenados por crimes de colarinho-branco, como peculato, concussão, corrupção passiva, corrupção ativa, tráfico de influência e os praticados contra o Sistema Financeiro Nacional. Porém, o referido decreto foi validado pelo Plenário da Corte em novembro do mesmo ano.

Na ocasião, Barroso destacou que a extensão do decreto aos condenados por diversos crimes, viola de maneira objetiva o princípio da moralidade, bem ainda descumpre os deveres de proteção do Estado aos valores e bens jurídicos constitucionais que dependem de efetividade mínima do sistema penal.

O instrumento utilizado pelo atual Presidente da República é a graça que tem por objetivo o perdão de condenação de pessoa específica e deve ser solicitada pelo próprio condenado ou por sua defesa. Relembre-se que o indulto individual deveria passar primeiramente pelo Conselho Penitenciário, que poderia fazer relatório favorável ou desfavorável à concessão do indulto.

E, em face da gravidade dos crimes cometidos pelo parlamentar, dificilmente haveria um relatório favorável. Por esse flagrante ato contra o Estado Democrático de Direito, pois as práticas imputadas ao parlamentar eram antidemocráticas e abalavam a república no seu tripé de poderes constituídos, poderá o presidente ter seu impeachment requerido diretamente ao STF.

Pelo crime de responsabilidade, conforme prevê o artigo 39 da Lei 1.029, de 10 de abril de 1950 que define os crimes de responsabilidade e, ainda regula o respectivo processo de julgamento.

In litteris: São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: 1- alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; 2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; 3 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo:

5 – proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decôro de suas funções. (grifo meu).

De acordo com o jurista Fernando Fernandes, o STF poderá avaliar o desvio de finalidade de Bolsonaro, em relação a decisão de indulto ocorrida imediatamente a uma decisão do STF que nem foi publicada ainda. Há evidente desvio de finalidade e que pode ser analisada “ex officio”.

Registre-se que existem mais de 143 pedidos de impeachment em face do atual Presidente da República e, que envolvem quebra de decoro, improbidade administrativa, violação do direito à saúde e à vida e o negacionismo à vacina contra Covid-19.

Ao conceder o indulto ao parlamentar, protegendo um criminoso, age em abuso de autoridade e, o PT poderá entrar com uma Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional já que o presidente cometeu crime de responsabilidade.

Sublinhe-se que o condenado não seria preso imediatamente, pois ainda pode recorrer da decisão do colegiado ao STF, enquanto isto poderá continuar exercendo sua função. Mas, pela definição do inciso VI do artigo 55 da Constituição Federal brasileira em vigor determina a perda de mandato quem sofrer condenação em sentença transitada em julgado.

Ao elevar a crise institucional ao ápice, não é a primeira vez que realizou ofensiva contra o Judiciário e, mais uma vez, promove um carnaval de crises.

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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