Com 28 de milhões de brasileiros na miséria, Ceagesp faz paella gigante em festa de 53 anos

 
A falta de sensibilidade sempre reinou no setor público, onde agentes do Estado agem como se a população, que pagas seus salários, fosse uma reles peça em um quebra-cabeças que jamais se completará. A sensação de quem procura o serviço público, na maioria das vezes, é que o servidor está prestando um favor, quando na verdade a relação não é essa.

Que políticos só resgatam algumas gotas de sensibilidade no período eleitoral todo brasileiro coerente sabe, mas em determinados momentos esse descompromisso com a sociedade chega a ser afrontoso.

Não é de hoje que a miséria avança no País, mas durante a pandemia do novo coronavírus esse processo cresceu de forma rápida e preocupante. Os efeitos colaterais da crise sanitária foram muitos, mas o crescimento da miséria e do número de famílias sem segurança alimentar deveria ser motivo de reflexão por parte da classe política.

Maior centro de distribuição de alimentos da América Latina, a Ceagesp, federalizada há anos, decidiu comemorar os 53 anos do órgão vinculado ao Ministério da Agricultura com uma paella gigante De acordo com a assessoria de comunicação da central de abastecimento, a iguaria, cujas porções (400 gramas) serão vendidas a R$ 20,00, foi produzida a partir de doações dos permissionários da Ceagesp – 160 kg de camarão inteiro, 60 kg de lula tubo, 50 kg de marisco limpo, 40 kg de marisco meia casca, 60 kg de lagostim, 30 kg de camarão rosa limpo, 150 kg de filé de sobrecoxa de frango, 150 kg de arroz, 10 kg de sal, 12 latas de 2,55 kg de tomate pelado, 30 litros de azeite, 24 kg de ervilha, 24 kg de vagem, 3 baldes de 2 kg de alho triturado, 4 latas de páprica, ½ kg de tempero especial para paella, 40 kg de cebola, 36 kg de pimentão vermelho, 36 kg de pimentão amarelo e 5 maços de salsinha.

Quem frequenta a Ceagesp, em especial nos dias do chamado “varejão”, já viu pessoas famintas revirando as caçambas de lixo em busca de alimentos descartados, carcaças de frango e pele e espinhas de peixe, além das frutas e legumes que são pegos no chão. A cena é desoladora, sem que o Estado, como um todo, tome as decisões necessárias para reverter o caos.

 
O escárnio oficial da Ceagesp ocorre na esteira do avanço da miséria provocado pela pandemia, como já citado. Em janeiro de 2021, 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 ao mês (R$ 8,20 ao dia), linha de pobreza extrema calculada pela FGV Social a partir de dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnads) Contínua e Covid-19.

Em outubro de 2021, também de acordo com dados da FGV Social, quase 28 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia de Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões de indivíduos nesta situação.

Em 2022, o número de famílias em situação de extrema pobreza inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) teve alta de 11,8%. Em fevereiro passado (última atualização dos dados), 17,5 milhões de famílias brasileiras viviam com renda per capita mensal de até R$ 105.

Quem circula pela maior metrópole brasileira, São Paulo, onde está localizada a Ceagesp, há de se assustar com a visível disparada do número de pessoas vivendo nas ruas, que saltou de 24.344 para 31.884 ao final de 2021, aumento de 7.540 pessoas ou 31%. Os dados são do Censo da População em Situação de Rua, feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura paulistana. À margem dos números oficiais, a quantidade de pessoas em situação de rua ultrapassa a marca de 40 mil, pois centenas vivem em buracos existentes debaixo de pontes e viadutos.

Não se trata de demonizar o 53º aniversário da Ceagesp, comemorado nesta terça-feira (31), mas com um pouco de sensibilidade poder-se-ia transformar a paella em milhares de marmitas destinadas às pessoas em situação de rua. Alguém pode rebater nossa crítica afirmando que a Ceagesp já faz um trabalho nesse sentido, mas nada é demais para quem tem fome.

Como disse o saudoso sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, “quem tem fome, tem pressa”. Ou como diz a letra da música homônima e tema da campanha “Natal Sem Fome” (vídeo abaixo): “Nesse momento tem gente morrendo de fome / No nosso Brasil / É a tristeza que a sociedade consome / Me diz quem não viu…” (Fotos: Coordenadoria de Comunicação e Marketing – Ceagesp)