Ganhei a volta da democracia de presente!

(*) Ucho Haddad

A vida me ensinou que ter é infinitamente menos importante do que ser. A maturidade me mostrou que consigo existir com pouco e devo me preocupar cada vez mais com o próximo, com os desvalidos. Assim aprendi na casa dos meus pais, onde estender a mão a quem precisa era regra. Muitas vezes ouvi que não dou a devida importância aos mais próximos, sempre tendo tempo e disposição aos que precisam. Quando fui ausente com os meus é porque estava ocupado e preocupado com os não tão próximos, que também são meus, são nossos.

Longe de ser o mais patriota dos brasileiros – talvez esteja entre eles –, confesso que até aqui lutei com garra e determinação pelo Brasil, por cada conterrâneo, também pelos que não são, mas que aqui estão. Não poderia ser diferente. Assumi esse compromisso com o Brasil íntima e silenciosamente. Isto se deu em um momento que exigiu difícil decisão. Optei pelo Brasil e pelos brasileiros. Para cá voltei depois de anos fora do Brasil, onde desfrutava de uma vida digna, sem exageros, mas com tranquilidade, depois de longo e desafiador tratamento médico.

Desde o meu retorno ao Brasil (novembro de 2000) até hoje, 30 de outubro de 2022, ouvi desaforos dos mais variados e covardes. Fui alvo de ataques sórdidos, ameaças torpes. Foram 22 anos de insultos diversos e criminosos, ilações rasteiras, investidas túrbidas. Em alguns momentos pensei que não resistiria, mas desistir é uma palavra que não consta no meu dicionário da vida. Paciência, otimismo, determinação e coerência me sobram.

De julho de 2001 até hoje foram mais de 5 mil edições do UCHO.INFO, página eletrônica que idealizei para defender o Brasil, a democracia, a liberdade, o Estado de Direito, a Constituição, as leis. Sempre à sombra do jornalismo sério, independente, responsável e comprometido com os leitores e com a verdade dos fatos. Não foi tarefa fácil, continua sendo difícil.

Na eleição presidencial de 2018, apesar de todos os ataques da patrulha bolsonarista, afirmei que a eleição de Jair Bolsonaro representaria uma séria ameaça à democracia e que em algum momento o presidente tentaria um golpe, uma disruptura institucional. Tentativas tiveram várias, mas faltou o apoio necessário para tamanha ousadia golpista. O tempo mostrou-se senhor da razão, apesar de não ter vocação para profecias apocalípticas.

Com o acirramento da disputa presidencial, Bolsonaro retomou a radicalização do discurso de maneira cifrada e a reboque de mentiras e deboches, sem demonstrar de maneira clara o perigo de suas intenções. Muitos detalhes sequer foram percebidos pela opinião pública, que estava preocupada com o dia seguinte. Ânimos exaltados, incerteza no ar, temores batendo à porta. Assim era o cardápio de cada minuto, cada segundo.

Neste domingo de eleições, muitas pessoas me procuraram para saber minha opinião sobre o resultado da disputa entre Lula e Bolsonaro. Queriam informações de bastidores, um prognóstico da mais apertada eleição presidencial da nossa história. Repeti a análise dos últimos dias, a qual transmiti a pessoas muito próximas: vitória de Lula por margem extremamente pequena. Alguns próceres petistas também tinham a mesma leitura. Falavam em diferença de 1 milhão de votos, foi pouco mais que o dobro.

Noite da última quinta-feira, 27 de outubro, três dias para a esperada eleição. Eis que surge uma informação privilegiada de bastidor: integrante destacado da campanha de Tarcísio de Freitas disse que parte do staff da campanha de Bolsonaro prestes a jogar jogado a toalha. Afinal, pesquisa interna apontava na direção da derrota do presidente.

Voltando ao consumo existencial… No domingo de eleições completei 64 anos. Jamais imaginei que depois de tantos anos de luta como jornalista e a essa altura viveria uma situação eleitoral tão adversa como a que presenciamos nesse quase interminável dia. Votei e na sequência fui ao encontro do bolo que sempre marcou presença nos meus aniversários. Essa relação de fidelidade com o bolo começou por culpa da minha mãe. Ano após ano tinha o tal bolo. Enquanto estive a viver fora, o bolo apenas frequentou o meu imaginário.

Foi-se o tempo em que me importava com o aniversário – talvez tenha me ocupado disto quando criança. Certa vez acabei me esquecendo que era meu aniversário. Nunca esperei presentes. Na verdade, em tempos outros, não tão distantes, quando alguém insistia no assunto dizia que o melhor presente era ganhar um lenço de bolso. Sou dependente de um lenço no bolso. Essa dependência aumentou com o avanço dos anos e não consigo sair sem dois deles. Tenho vários na gaveta.

Votei no começo da tarde e em seguida fui ao encontro do bolo que sempre marcou presença no meu aniversário. Essa relação de fidelidade com o bolo começou por culpa da minha mãe. Ano após ano estava lá o tal bolo. Enquanto vivi longe do Brasil, o bolo frequentou o meu imaginário.

Retornava de uma tradicional doceira paulistana, encravada no coração do que chamo carinhosamente de “República Federativa da Mooca” (sou egresso da Zona Leste), quando me peguei a pensar em presentes. Como disse, vivo com pouco, tudo está sempre bom. Depois da enxurrada de lenços de bolso que ganhei por muito tempo, mudei para sabonete e lavanda Johnson’s. Pode parecer utópico um sexagenário querer sabonete e perfume de criança, mas sou assumidamente olfativo.

Ciente de que não ganharia de presente sabonete nem lavanda, decidi que neste aniversário queria mais, algo possível, mas que o dinheiro não compra: a retomada da democracia. Foi difícil, mas ganhei a democracia de presente. Agora, já madrugada de 31 de outubro, comerei mais um pedaço do bolo deste e de todos os aniversários. E farei degustando o sabor inconfundível da democracia. Tudo o que vale a pena na vida dá trabalho para conquistar. Democracia, bolo – da “Mooca, bello” –, lenço de bolso, sabonete e lavanda Johnson’s sempre!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.

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