O irrequieto mercado financeiro versus a dignidade do povo brasileiro

     
    (*) Waldir Maranhão

    Até 30 de outubro, a prioridade no país era salvar a democracia, constantemente ameaçada pelo atual presidente da República.

    Passado o segundo turno da eleição presidencial, o foco foi direcionado para a formação da equipe ministerial pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e as diretrizes da política para os próximos quatro anos.

    Há dias, Lula criticou a reação do mercado financeiro diante de sua fala sobre o teto de gastos e o equilíbrio fiscal do governo. Naquele momento teve início uma batalha entre o capital e a miséria.

    Agentes e analistas do mercado financeiro não gostaram da declaração do presidente eleito, comportamento suficiente para fazer a Bolsa de Valores cair e a cotação do dólar subir.

    Entendo que o equilíbrio fiscal e a meta de inflação são importantes para que o país consiga atrair investimentos. Também reconheço que o desequilíbrio fiscal prejudica principalmente os brasileiros mais pobres, mas é preciso ponderação ao analisar os fatos.

    O mercado financeiro quer ditar as regras em um país que sucumbe no vácuo da tragédia social. São mais de 33 milhões de pessoas passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar.

    O grande desafio do próximo governo é encontrar o meio termo para um cenário tão preocupante. Enquanto o equilíbrio fiscal e o teto de gastos são imprescindíveis para a retomada do crescimento econômico, contemplar a fome avançando Brasil afora não é a melhor das receitas. Se por um lado é preciso responsabilidade fiscal, por outro é imperioso um mínimo de humanidade.

    É fácil querer impor regras econômicas instalado em escritórios e gabinetes com excesso de tecnologia e conforto, depois de fartos almoços, enquanto milhões de pessoas estão nas ruas revirando o lixo em busca de restos de comida e pedindo ajuda nos cruzamentos das ruas de milhares de cidades brasileiras. Sem contar os cidadãos em situação de rua, cujo índice aumentou assustadoramente durante a pandemia.

    Como qualquer candidato, Lula fez promessas durante a campanha eleitoral e terá de cumpri-las, mesmo que de forma parcial. Porém, o combate à fome e à miséria é prioritário. Não se pode ignorar quem não tem o que comer.

    O atual presidente da República, que sem sucesso tentou a reeleição, também fez promessas impossíveis de serem cumpridas e se levadas às vias de fato resultariam em gastos acima do teto.

    Apenas para recobrar a memória dos leitores, o atual presidente rompeu o teto de gastos em pelo menos três relevantes ocasiões: em 2020, ano do início da pandemia no Brasil, com R$ 520 bilhões acima do teto. Naquele ano havia uma justificativa para o estouro dos gastos. Em 2021, R$ 114 bilhões; em 2022, R$ 155 bilhões. Sem considerar a inconstitucional PEC do ICMS dos Combustíveis, matéria de competência exclusiva dos governos estaduais.

    A contabilidade criativa do atual governo não foi colocada em cena porque o governo se preocupa com os mais pobres e os famintos, mas porque o objetivo era comprar votos. Na ocasião, o atual presidente afirmou que o importante era aprovar as medidas, deixando o problema fiscal para depois. O auxílio pontual concedido aos caminhoneiros foi uma aposta do governo para no caso de derrota contar com a categoria em possível paralisação das estradas.

    Nos mencionados três momentos em que o teto de gastos foi violado, o mercado financeiro não esperneou como faz agora. Talvez pelo fato de o ministro da Economia ser banqueiro e ter boa relação com o mercado.

    Liderada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, a equipe de transição acenou ao Congresso Nacional o desejo de aprovar uma PEC que deixe fora do teto de gastos, por quatro anos, os recursos destinados ao Bolsa Família. É uma proposta coerente em termos sociais. Além disso, é premente a destinação de recursos ao programa Farmácia Popular e à merenda escolar.

    Há caminhos para minimizar o estouro do teto de gastos, mas é preciso vontade do novo governo e patriotismo por parte dos donos do capital e da classe política. O primeiro passo é taxar grandes fortunas e os dividendos destinados aos acionistas das empresas. O segundo passo é acabar com orçamento secreto, solução que a extensa maioria do Parlamento já rejeita.

    Em 1995, durante entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, a economista Maria da Conceição de Almeida Tavares foi certeira, talvez apocalítica. “A economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos a isto que ocorrendo no mundo inteiro: uma brutal concentração de renda e de riqueza, o desemprego e a miséria”, disse a economista.

    Em outro trecho da entrevista, Maria da Conceição Tavares foi além ao criticar o modelo econômico da época, o qual se rete até hoje: “Isso, pra mim, não é economia. Isso, honradamente… Quase que eu digo: do ‘demo’. Uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar, depois crescer, despois distribuir, é uma falácia”.

    Analisando o que aconteceu nos últimos quatros anos em termos econômicos, sob a batuta do atual governo, e o que propõe o presidente eleito Lula, não é difícil concluir que a chiadeira do mercado financeiro não é decorrente de questões técnicas, mesmo que empíricas, mas ideológica.

    É impossível falar em retomada do crescimento econômico em um país com 214 milhões de habitantes, dos quais 124 milhões (58%) enfrenta a insegurança alimentar e 33 milhões (15,5%) passam fome.

    De novo recorro à economista Maria Conceição Tavares, que artigo publicado em fevereiro de 2018 foi cirúrgica: “Vivemos sob a penumbra da mais grave crise da história do Brasil, uma crise econômica, social e política. Enfrentamos um cenário que vai além da democracia interrompida. A meu ver, trata-se de uma democracia subtraída pela simbiose de interesses de uma classe política degradada e de uma elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um projeto de reconstrução nacional – o que, inclusive, praticamente aniquila qualquer possibilidade de pactação.”

    Mais de quatro anos depois da publicação do citado artigo, a situação do Brasil piorou de forma preocupante, sem que a parcela abastada da sociedade se disponha a algum tipo de sacrifício para extirpar o caos. É o que prega o dito popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

    Se “a política é a arte do possível”, como disse o poeta e escritor italiano Cesare Pavese, um conhecido antifascista, no Brasil o mercado financeiro terá de conviver com o impossível para que todos tenham dignidades e as mesmas oportunidades.

    Vaticinou o grande Walt Disney: “Eu gosto do impossível porque lá a concorrência é menor”.

    (*) Waldir Maranhão – Médico veterinário e ex-reitor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde lecionou durante anos, foi deputado federal, 1º vice-presidente e presidente da Câmara dos Deputados.

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