(*) Gê Coelho
Enquanto o dia 4 de novembro foi oficialmente instituído como o Dia Nacional da Favela, o dia 28 de outubro de 2025 ficará marcado na história do Rio de Janeiro como um dia de infâmia. Uma data que expõe, com brutal clareza, a necropolítica do Estado brasileiro contra as populações periféricas.
Mais de 120 pessoas foram executadas em uma operação policial que chocou o país e o mundo. Os relatos são estarrecedores: corpos decapitados, pessoas amarradas antes de serem mortas, marcas de tortura e perfurações por arma branca. Não se trata de confronto. Trata-se de execução sumária, prática que não encontra respaldo em nenhum artigo da Constituição Federal brasileira, independentemente da condição da vítima.
A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, estabelece em seu artigo 5º que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e que “não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada”. Mesmo diante de suspeitos ou criminosos confessos, o Estado não tem o direito de executar. O direito à vida é inviolável.
O que presenciamos não é um caso isolado, mas a continuidade de uma política genocida que tem cor, endereço e classe social bem definidos. O favelicídio é o desejo pujante de derramamento de sangue de pretos, pobres e periféricos. Uma necropolítica que decide quem pode viver e quem deve morrer, baseada em critérios de raça e território.
As vítimas preferenciais são sempre as mesmas: jovens negros e favelados. Crianças, idosos, homens e mulheres são ceifados pela violência estatal, mas o perfil que mais se repete nas estatísticas de letalidade policial é o do jovem negro, morador de favela, entre 15 e 29 anos. O mesmo perfil das vítimas da Chacina do Complexo da Penha.
A história se repete com uma frequência alarmante. Casos como a Chacina do Jacarezinho, em 2021, com 28 mortos, ou a Chacina da Maré, em 2022, revelam um padrão sistemático de atuação que naturaliza a violência contra favelados. Cada operação é justificada como “combate ao crime organizado”, mas os resultados falam por si: pilhas de corpos, famílias destroçadas e comunidades traumatizadas.
É impossível dissociar essas práticas do racismo estrutural que funda e sustenta o Estado brasileiro. Desde a abolição formal da escravidão em 1888, nunca houve um projeto real de integração da população negra. Ao contrário, as favelas foram historicamente tratadas como territórios a serem controlados, vigiados e, quando conveniente, eliminados.
O conceito de necropolítica, desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, explica como o Estado exerce o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. No Brasil, essa política tem endereço certo: as favelas e periferias, onde a maioria da população é negra e pobre.
Enquanto 120 vidas são ceifadas, parte significativa da sociedade permanece em silêncio ou, pior, comemora. O discurso de “bandido bom é bandido morto” revela a desumanização daqueles que habitam as margens. Como se morar em favela fosse crime. Como se ser negro fosse sentença de morte. Como se a polícia pudesse ser juiz, júri e carrasco.
Diante desse genocídio, a resistência é imperativa. Movimentos sociais, coletivos de favelas, organizações de direitos humanos e familiares de vítimas seguem denunciando, documentando e lutando por justiça. São essas vozes que mantêm viva a memória dos mortos e exigem que o Estado seja responsabilizado.
O Dia Nacional da Favela, celebrado em 4 de novembro, deve ser um momento de reflexão sobre essas violências sistemáticas. Não se pode celebrar a cultura e a resistência das favelas sem denunciar o extermínio de seu povo.
É urgente a construção de um novo paradigma de segurança pública no Brasil, que rompa com a lógica bélica das operações policiais em favelas. É necessário responsabilizar agentes e autoridades envolvidos em chacinas. É fundamental que a sociedade brasileira reconheça que vidas de favelados importam, que vidas negras importam.
O dia 28 de outubro de 2025 não pode ser esquecido. Cada uma das mais de 120 vidas perdidas deve ser lembrada. E a luta por justiça deve continuar, até que não haja mais dias de infâmia nas favelas do Rio de Janeiro.
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais.” — Caetano Veloso
(*) Gê Coelho, ativista político, Mestre em Filosofia e historiador. Fundador da Frente Favela Brasil e da Frente Nacional Antirracista, é também autor da obra científica “Favelismo: a revolução que vem das favelas”. Instagram @gecoelho.ffb
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