Nos primeiros meses do mandato presidencial, Jair Bolsonaro recorreu de forma insistente ao discurso da “velha política”, como se ele próprio não fosse representante do que falsamente condena. É importante que a sociedade separe o que Bolsonaro sempre representou em termos políticos e o fato de ter aproveitado o descontentamento de boa parte da população com a classe política. Há uma considerável e assustadora diferença entre ambas as situações.
Governando para o segmento mais colérico e revanchista do eleitorado, o que de chofre é um atentado contra o discurso de quem se diz democrata, Bolsonaro destila pílulas de falso moralismo, como se a capacidade de raciocínio do brasileiro fosse nula.
A reboque do anúncio de que está deixando o PSL, partido que viabilizou sua candidatura à Presidência e tecnicamente garantiu sua chegada ao Palácio do Planalto, Bolsonaro decidiu criar nova legenda, o Aliança pelo Brasil.
Com base na declaração do presidente da República, os responsáveis por cuidar das questões burocráticas do processo divulgaram, na tarde de terça-feira (12), um manifesto em que, citando nominalmente Jair Bolsonaro, afirmam que o principal objetivo da nova agremiação é resgatar o Brasil do massacre proporcionado pela “degradação moral contra as boas práticas e os bons costumes”.
No documento, o Aliança ressalta que o novo partido abrigará “a grande maioria de brasileiros e brasileiras que clamam por uma nova ordem de referências éticas e morais”. Como se a ousadia dos correligionários do presidente fosse pouca, o Aliança emendou: “Muito mais que um partido, é o sonho e a inspiração de pessoas leais ao presidente Jair Bolsonaro, de unirmos o país com aliados em ideais e intenções patrióticas”.
Que políticos brasileiros passam a léguas de distância de espelhos, como forma de evitar a decepção, todos sabem, mas é preciso comedimento ao valer-se da mitomania desenfreada.
Falar em “referências éticas e morais” soa como heresia, pois o escândalo envolvendo Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro continua sem a necessária explicação, ao mesmo tempo em que aguarda solução. Se a apuração do caso foi suspensa de maneira abrupta, é porque houve interferência palaciana nos subterrâneos das investigações. Quem acompanha a política brasileira com assiduidade e conhece os escaninhos do poder sabe como isso acontece – com frequência, é bom ressaltar.
Bolsonaro tem o direito constitucional à livre manifestação do pensamento, o que engloba também a possibilidade de despejar seu cipoal de mentiras sobre a opinião pública, mas beira a irresponsabilidade aceitar passivamente as justificativas para a criação do novo partido, como se o presidente da República não continuasse devendo explicação sobre o empréstimo (R$ 40 mil) concedido a Fabrício Queiroz e o depósito (R$ 24 mil) que o ex-assessor parlamentar fez na conta bancária da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Esse vai e vem financeiro passa pelo escândalo das “rachadinhas”.
Quando um presidente da República ignora o artigo 37 da Constituição Federal, que trata dos “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” no âmbito da “administração pública direta e indireta”, usando a máquina estatal para retaliar desafetos políticos e adversários ideológicos, a menção a “boas práticas”, “bons costumes” e “intenções patrióticas” configura deboche.