Perguntas que faço

(*) Marli Gonçalves

Como você está? Nesses mais de cem dias, que parecem séculos, de quarentena e isolamento social, tanta coisa mudou, tantas coisas ficaram para trás, por imediatamente consideradas desimportantes ou por terem se tornado impossíveis até de se pensar sobre elas. Muitos sentimentos se misturam, e isso é muito pessoal, individual, chega a ser solitário

Como você está? Tem ficado meio paranoico com limpeza? E os sonhos/ pesadelos estão bem loucos? Ouviu falar que isso está acontecendo com todo mundo? Tem conseguido tomar decisões? Pensar no futuro? Acha que o mundo vai mesmo mudar – para melhor ou pior – depois de tudo isso? Tem tido oscilações de humor, otimismo, que parecem montanha russa, e é obrigado a disfarçar, o que piora ainda tudo mais? Está tudo meio descontrolado? Horários, trabalho, disposição, pensamentos, desejos, inclusive sexuais? Do que sente falta?

Tem encontrado prazer em fazer coisas corriqueiras como cozinhar, jardinagem, séries de tevê, filmes B, comédias românticas que arrancam lágrimas, novelas velhas sendo repetidas? O meu cúmulo, confesso, se deu quando me peguei essa semana arrumando as roupas para secar no varal como se fosse arte para uma foto, tudo esticadinho, cor com cor, calcinhas de um lado, meias de outro, tudo equilibrado.

Enfim, o melhor e mais seguro lugar do mundo passou a ser sua casa e cada vez que tem de sair sofre? Incorporou a máscara? Fica muito exasperado quando encontra alguém ou sem ela, ou com ela no queixo, no braço, no pescoço, pendurada na orelha ou pendurada no retrovisor do carro? E as jogadas nas ruas? Fica perplexo e desiludido com a humanidade ao saber das aglomerações, festas, verdadeiros desafios e focos de contaminação?

Como você está? – pergunto novamente. Dizem que fazer testagem mais completa seria bom, mas já viram os preços? E as dificuldades impostas para consegui-los em postos de saúde ou com os convênios médicos? Os testes rápidos viraram febre, mas têm questionados sua eficácia real, a história do falso positivo, falso negativo.

Pelo que estou vendo, somos normais. Está acontecendo e é geral essa que pode ser chamada angústia, mas é até mais do que isso.

Lidamos com medos o tempo inteiro em nossas vidas, mas parece que desta vez esse sentimento mundial, a possibilidade de morte tão próxima de nós e de quem amamos, ou mesmo de quem apenas sabemos, uma morte besta, por um vírus microscópico, invisível, aéreo, feio e cheio de pontas, nos tornou mesmo outras pessoas. Para o bem e para o mal, que tem gente para caramba se dando bem, e aproveitando para abrir o saquinho de maldades, roubar, deixar passar a boiada em algum assunto.

Como você está? – insisto. 70 mil mortes no país, número oficial, e que pode ser ainda muito maior. Difícil não ter sido atingido de alguma forma, no mínimo por um terrível sentimento de impotência. Ou, pior, pela perda de alguém querido, um familiar, um alguém que lhe era importante. Essa semana perdi um grande e admirado amigo, mestre de décadas: o escritor, teatrólogo e pessoa boa Antonio Bivar. Ficaria horas falando sobre ele. E bem. Um garoto de 81 anos que flanava pela vida da forma mais simples que pode haver, caminhando nas ruas, sentindo o ar, ouvindo as pessoas, se enternecendo por suas histórias, acompanhando-as em suas pequenas vitórias.

Me senti dividida entre sentimentos difíceis de serem descritos, além da tristeza. O alívio de quem não queria que ele sofresse mais numa cama da UTI. Raiva, muita, por esse vírus levar embora ele e tanta gente boa com ainda tanto a fazer, produzir, acrescentar. Dúvidas, ouvindo números assustadores e a reabertura das porteiras, lojas, atividades, de uma forma um bocado confusa. Pavor, por encontrar nas ruas muitos que parecem ainda não se dar conta do quanto pode ser terrível essa doença e que ninguém, ninguém mesmo, sabe se está entre estes que sucumbirão, ou ficarão com sequelas, ou se terão apenas sintomas leves, ou mesmo nem isso – apenas poderão transmitir; deixá-lo, traiçoeiro, onde tocarem, por exemplo.

Fora, enfim, estarmos governados por um presidente, agora infectado, como até parece ter sido, mas que ninguém põe a mão no fogo por conta de tantas mentiras já contadas, e que ainda insiste em propagandear um perigoso medicamento que mandou produzir aos milhões.

Eu teria muitas perguntas ainda a fazer sobre como estamos nos sentindo em vários aspectos, e certa de que estaria ouvindo você responder: “eu também”. Mas não temos outro jeito por enquanto a não ser enfrentar nossos medos, nossas tristezas e, especialmente, essa máquina louca de pensamentos só nossos e que às vezes nos pega tão sozinhos os combatendo, os afastando, mas eles teimam em voltar, voltar…

(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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