O açoite ao Estado de Direito e a criminosa subserviência de setores da imprensa brasileira

    (*) Ucho Haddad

    Diferentemente do que muitos imaginam, o exercício do jornalismo – do bom jornalismo, é bom que se diga – é tarefa árdua que exige coragem, muita coragem. Afinal, lidar com a verdade e levá-la até uma sociedade colérica e revanchista não é missão fácil. Um jornalista que foge às leis apenas para agradar a massa ignara não merece respeito. Aliás, o profissional que age dessa maneira deveria ser execrado pela classe, que, como é sabido, ora existe à sobra do corporativismo, ora existe na esteira da autofagia.

    Sem temer patrulhas por parte dos “coleguinhas” e da opinião pública, mantenho minhas convicções e a crença no bom jornalismo, pois o jornalista não pode exercer o ofício de maneira diferente, que não com o inviolável compromisso com a verdade.

    Cada cidadão é livre para defender suas opiniões, mas não se pode aceitar que formadores de opinião usem esse detalhe para despejar sobre a sociedade um cipoal de informações enganosas e distorcidas. O julgamento do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) não passou de espetáculo acintoso encenado por aqueles que se desmancham diante do “lavajatismo”, como se inexistissem no País legislação vigente e balizas jurídicas.

    Longe de querer dar a Lula o manto da inocência, até porque estaria a contrariar o meu trabalho como jornalista político e investigativo, cobro, com a devida dose de indignação, que a Constituição Federal seja cumprida em sua inteireza, sem direito a bamboleios interpretativos, e decisões de instâncias superiores do Judiciário sejam acatadas. E que o Estado de Direito permaneça intacto, como a mais importante e segura trincheira da democracia.

    Quem conhece os subterrâneos da política nacional sabe como se dão os fatos em um cenário de polarização social e revanchismo ideológico. Insisto em afirmar que Lula não é inocente no caso do sítio em Atibaia, cuja ação penal abriga conjunto probatório que não deixa dúvidas pelo caminho, mas é importante que a lei seja aplicada sem que exista a menor possibilidade de violação dos direitos individuais e das garantias fundamentais.

    O TRF-4, que, para fazer justiça, deveria aplicar a tese consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que o réu delatado deve ser o último a apresentar as alegações finais, prefere o “justiçamento” a qualquer preço, pois os julgadores de Lula fazem parte do grupelho de falsos heróis dessa terra de ninguém em que se transformou o Brasil.

    Não importa se os réus delator e delatado protocolaram as respectivas alegações finais no mesmo horário, sem prejuízo a qualquer das partes, como salientou um dos julgadores, pois a decisão do Supremo acerca do tema é clara. Aliás, sequer precisaria o STF decidir sobre a matéria, pois a Carta Magna é cristalina e didática no artigo 5º ao tratar do direito ao devido processo legal e ao amplo direito de defesa.

    “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

    LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

    De igual modo, pouco importa o fato de o réu delatado não ter sido prejudicado com a apresentação simultânea das alegações finais, pois o direito ao contraditório põe por terra a alegação apresentada no julgamento que resultou na recusa do pedido de anulação da sentença condenatória imposta a Lula. Ou seja, o dever da Justiça é cumprir a lei e acatar decisões superiores.

    Vergonhosamente preguiçoso em termos políticos, o brasileiro deixa à ditadura de alguns setores do Judiciário a incumbência de buscar, com o tacape do autoritarismo, as soluções que lhe convém, sem se preocupar com a violação do Estado de Direito. Quer-se punir corruptos, desde que esses sejam adversários políticos ou ideológicos. Do contrário, prevalecem o compadrio criminoso e a complacência tosca.

    A reboque desse cenário dantesco em termos legais, operadores da Justiça ignoram a máxima das leis como forma de dar vazão à sanha persecutória que se esconde debaixo da toga. Não é preciso ser nem mesmo um rábula para saber que a Constituição recepciona com altivez e firmeza a teoria do devido processo legal em dois incisos do artigo 5º, além do inciso LIV, mencionado anteriormente:

    “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

    XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”

    Ao desrespeitar a linha do tempo no âmbito da apresentação das alegações finais, o TRF-4 ignorou a ameaça ao direito do réu, assim como transformou em imperfeito o ato jurídico em questão. Insisto no termo “justiçamento”, pois está marcha, nas coxias do poder, um movimento que tem na alça de mira promoções no escopo do Judiciário e a conquista de cargos de sabida relevância política. E serão recompensados aqueles que fizerem as vontades dos atuais donos do Poder.

    No que tange à decisão inconstitucional do Supremo que autoriza o compartilhamento de dados da Receita Federal e da Unidade de Inteligência Financeira (antigo Coaf) sem a necessidade de autorização judicial, causa espécie a leniência torpe de setores da imprensa, que classificam o resultado do julgamento (já há maioria formada) como expressiva vitória no combate à corrupção.

    Não sou adepto da corrupção, pelo contrário, até porque coube a mim a primeira denúncia sobre o esquema criminoso que funcionou na Petrobras durante aproximadamente uma década, mas é preciso salientar que o direito ao sigilo é uma garantia constitucional, muito bem definida pela Carta Magna no artigo 5º (cláusula pétrea), inciso XII:

    “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

    Ora, se a Constituição, em cláusula pétrea, determina que o sigilo de dados é “inviolável, salvo, no último caso, por ordem judicial”, o julgamento em pauta no Supremo é tão desnecessário quanto descabido. Além disso, lembro que um sinal verde para o compartilhamento de dados sigilosos sem autorização judicia será um convite para a perseguição por parte do Estado.

    Não arredo o pé da defesa do Estado de Direito, sem o qual a sociedade transforma-se em um pardieiro institucionalizado, onde o vale-tudo é a cartilha que rege o cotidiano e baliza o comportamento do cidadão, se é que nesse tablado do absurdo pode existir algum tipo de balizamento.

    Que ninguém pense que o revanchismo ideológico que divide a população e move setores do Judiciário ficará circunscrito aos crimes de corrupção e outras violações conexas, pois as plúmbeas canetas de alguns magistrados sentenciam sem dó ou piedade, como já demonstrado e comprovado. Que ninguém, daqui a algum tempo, alegue que não sabia. Quem avisa amigo é!

    (*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.

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