Catástrofe tupiniquim: entre o Estado omisso e a parcialidade da lei

    (*) Ucho Haddad –

    “Os eventos são naturais, mas a exposição de pessoas, principalmente a população mais pobre, é fruto da omissão do Estado.” (Marina Silva, senadora pelo PV do Acre)

    Interpretar o Estado, como um todo, não é tarefa das mais fáceis. O Estado pode tudo, inclusive fugir impunemente das suas responsabilidades, sem que qualquer pena lhe seja imposta. A história da Justiça brasileira mostra que em nenhum momento existiu a personificação da culpa nos casos em que o poder público se fez omisso, como aconteceu na maior catástrofe natural do País, na região serrana do Rio de Janeiro, onde o número de mortos já passa de 600 e pode chegar com certa facilidade a mil vítimas fatais. Com dois anos de antecedência, o fanfarrão Sérgio Cabral Filho (PMDB), governador de um dos mais importantes estados brasileiros, foi informado sobre a possibilidade real de uma tragédia de proporções inusitadas no local que agora é palco de destruição e mortes. E nada fez para evitar o que o mundo tem assistido com consternação e tristeza.

    Enquanto as autoridades, em especial as fluminenses, buscam refúgio no silêncio obsequioso, pois só assim minimizarão os efeitos da artilharia da opinião pública, o clima que com regularidade marca as tragédias se alastrou por cidades importantes e conhecidas, como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, além de outros quatro municípios do Rio. Aplicar a lei com o devido e necessário rigor em um cenário de devastação e dor é algo que não deve ser feito de maneira automática. O amanhã de cada sobrevivente continua frequentando o universo da incerteza e da dúvida. E a tese do “salve-se quem puder” divide a cena com a solidariedade. O que para aqueles que estão de fora do problema pode parecer uma barbaridade, para quem neste momento frequenta o olho do furacão é a lei da sobrevivência. Não há como ser diferente. E a História mostra isso com absoluta clareza e pontualidade.

    A Polícia Militar do Rio de Janeiro anunciou que qualquer comerciante pode ser preso diante da tentativa de vender por preços considerados abusivos produtos de primeira necessidade aos moradores das cidades afetadas pela força da chuva. E para tal invocou, entre tantos argumentos, o Código de Defesa do Consumidor. Primeiro é preciso saber o que é preço abusivo e até que ponto uma corporação policial pode ingerir no negócio alheio. De fato o momento exige que a solidariedade permaneça cada vez mais no foco do cotidiano, mas em nenhum momento pode-se esquecer que o Estado é responsável pelo cidadão, de quem cobra impostos tão absurdos quanto levianos. Sendo assim, cabe ao governo do Rio de Janeiro, por sua confirmada omissão, suprir todas as necessidades dos que enfrentam o flagelo decorrente da irresponsabilidade de políticos conhecidamente incompetentes e gazeteiros.

    As forças policiais têm o dever constitucional de manter a ordem, mas para tal precisa usar a mais importante de todas as leis, na maioria das vezes abandonada por nove entre dez seres humanos: a coerência. E isso vale para os operadores da lei e para os que por ela são tutelados. Se por um lado a PM do Rio está investida desse anunciado direito, o de prender comerciantes que cometerem supostos abusos, por outro a corporação deveria dar voz de prisão ao seu comandante maior, o governador Sérgio Cabral Filho, que em qualquer país minimamente sério e responsável já estaria contemplando o nascer do sol de maneira geometricamente distinta.

    No contraponto, o proprietário de um reles armazém da esquina, ilhado pelo caos cada vez maior, não conseguirá manter-se durante muito tempo no topo da ganância erguida por preços vis e criminosos. É uma questão de tempo, absolutamente curto, diga-se de passagem, caso o Estado supere as suas notórias deficiências e supra o cenário da tragédia com tudo aquilo que for necessário e que nas últimas horas acionou a centelha dos especuladores.

    O que se tenta com a exposição de uma dúzia de comerciantes inescrupulosos é desviar a atenção da sociedade brasileira, que deveria agir com tenacidade diante do descaso das autoridades, que insistem em terceirizar a culpa como se a elas não coubesse a armadura da penitência. Desde que mentiram vergonhosamente diante das câmeras e microfones, durante entrevista coletiva concedida há dias no Rio de Janeiro, a presidente Dilma Rousseff e o governador Sérgio Cabral Filho têm evitado aparições públicas como forma de não serem responsabilizados pelo desastre. Cabral Filho merece o sinete da culpa por sua criminosa omissão, enquanto Dilma não pode ser alijada do processo, pois de seu mentor eleitoral, o messiânico Lula, recebeu o pomposo rótulo de “mãe de todos os projetos” do governo mais corrupto e incapaz de toda a história política verde-loura.

    Considerando que a PM fluminense alçou à mira os comerciantes e dublês de alarifes que buscam transformar o desespero alheio em lucro fácil, que as asas da coerência paire sobre a massa cinzenta de seus comandantes, pois há na região da catástrofe assuntos mais sérios e importantes à espera de soluções urgentes, como a desorganização na classificação e distribuição dos donativos que chegam dos mais distantes rincões dessa nossa louca e amada Botocúndia.

    Quando a omissão do Estado alcança o status da perenidade é inevitável que algum setor ocupe a lacuna deixada por aqueles que deveriam zelar pelo bem-estar da população. O melhor exemplo dessa conhecida inversão de valores foi protagonizado pelo crime organizado, que ao longo de décadas tomou os principais redutos da exclusão social no Rio de Janeiro. Foi exatamente nesses locais ocupados pelos narcotraficantes que a iniciativa privada aterrissou para auferir lucros sórdidos e desavergonhados. Com o crescente número de mortes em decorrência da insegurança pública, seguradoras passaram a subir os morros e oferecer, de alguns anos para cá, seguros de vida aos desassistidos pelo Estado. Uma ação covarde e debochada, como sempre acontece na selvageria do capitalismo, que em nenhum momento mereceu a reação das instituições policiais, agora indignadas com os gulosos comerciantes serranos.

    Ou o brasileiro aprende a tratar os assuntos afetos ao Estado com isonomia interpretativa, acolhendo no patíbulo da culpa todos os transgressores, sem distinção de qualquer natureza, ou o melhor é fechar o Brasil para balanço.