A tragédia de Realengo, as sandices das autoridades em um hospício chamado Brasil

    (*) Ucho Haddad –

    A tragédia que se abateu sobre a cidade do Rio de Janeiro, na manhã desta quinta-feira, já recheou o sempre atrapalhado cardápio discursivo de algumas autoridades. No afã de justificar a invasão de uma escola pública da capital dos fluminenses, o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB) classificou como “animal” o descontrolado que matou onze crianças e em seguida se suicidou.

    No dia dedicado aos jornalistas, 7 de abril, é preciso que a imprensa de nossa desgovernada Botocúndia recobre a coerência e faça uma análise sem sensacionalismo do que ocorreu em Realengo, na Zona Oeste do Rio, colocando cada um dos protagonistas em seus devidos lugares. O jovem Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, que invadiu a escola e liquidou quase uma dúzia de indefesas crianças, não deve ser poupado de críticas, mas sua ação não pode ser explorada isoladamente pela mídia verde-loura. Ainda é cedo para afirmar o que levou o jovem rapaz a cometer tamanha barbárie, mas por certo ele estava tomado, há muito, por algum tipo de transtorno psicótico.

    Se contemplado com calma e através de suas minúcias, o ser humano nada mais é do que uma esfinge, espécie que mescla os lados humano e animal. Quando a porção animalesca prevalece no ser humano, a tendência é que ele parta para um processo de eliminação de tudo aquilo que lhe incomoda. Assim funciona o reino animal. Em sua teoria antropológica, Aristóteles sempre defendeu a ideia de que o homem é um “animal social”. A sociabilidade citada por Aristóteles se deve ao fato de o homem ser o único animal que fala. E é a interlocução, independentemente da qualidade e da intensidade, que garante ao homem a condição de “animal social”. A introspecção excessiva transforma o comportamento humano em uma abissal incógnita, para não afirmar que é um repleto barril de pólvora rodeado por incendiários inveterados. E foi o que aconteceu no caso da escola carioca. O franco atirador tentou sacar do cotidiano algo que lhe incomodava, pois a mudez passou a ser a plataforma de um crime premeditado, sem justificativa, mas com uma eventual explicação, mesmo que absurda.

    Sem a chegada da polícia ao local do crime o estrago seria maior, mas Wellington estaria vivo para ao menos balbuciar uma explicação que atendesse às interrogações que ora pairam na sociedade brasileira. Ao partir para o crime, Wellington dificilmente chegou a pensar que sua empreitada era criminosa e utópica. Como toda pessoa incompreendida, o algoz de Realengo se atirou no mar da insanidade para continuar existindo. Mas ele próprio, em um lampejo meteórico de lucidez, tirou a própria vida.

    A brutalidade desse crime provocará discussões quase infindáveis e não conclusivas sobre a formação dos cidadãos, em especial no período da edificação da personalidade humana. A vida do ser humano, como se sabe, é dividida nos chamados setênios e a personalidade é formada no primeiro, ou seja, até os sete anos de idade. A partir daí, outros fatores serão agregados à história de vida de cada um, sempre dentro de períodos de sete anos. Hoje, Wellington mudou de lado. Abandonou a situação de não compreender o mundo para ser incompreendido por ele.

    Ao cometer a barbárie que ora estampa as manchetes dos veículos de comunicação do planeta, Wellington, o “Billy the Kid” de Realengo, deixou prevalecer o seu lado animal como forma de enfrentar algo que lhe perturbava como ser humano. E por conta disso agora é alvo de rótulos conferidos por autoridades, como foi o caso de Sérgio Cabral Filho. Não há como negar que Wellington cometeu um crime bárbaro e sem precedentes na história policial brasileira, mas Cabral Filho não é a pessoa mais adequada para tratar do assunto, muito menos para dispensar ao atirador o rótulo de “animal”.

    As colocações que aqui faço têm suas razões, pois entre o crime cometido por Wellington de Oliveira e as matanças ocorridas em Angra dos Reis, no Morro do Bumba, em Niterói, e na região serrana do Rio não existe qualquer diferença. E se existir, reside no status social que separa os criminosos ou no número de vítimas. Wellington matou quase uma dúzia, não se pode negar, mas quantos foram mortos pela incompetência de Sérgio Cabral Filho e outras figuras públicas? Fato é que inexiste diferença entre ser morto por um descontrolado e soterrado pela ausência do Estado, exceto quando tratamos do enredo que uma das histórias é capaz de render.

    Pois bem, deixando de lado o bárbaro crime cometido pelo tresloucado que virou notícia e a conhecida sandice de Cabral Filho, passo à tentativa absurda do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), de querer provar à atônita opinião pública que a escola, palco da tragédia, ostentava um mínimo de segurança. Fosse verdadeira a afirmação de Eduardo Paes, o descontrolado Wellington não teria sequer entrado na escola. Tal declaração por parte do alcaide carioca já era esperada, pois não se pode entronar um fiscal de praia no comando da segunda mais importante cidade brasileira, sem que o “Febeapá” (Festival de Besteiras que Assola o País) – aqui peço a devida licença ao saudoso Sérgio Porto, o genial Stanislaw Ponte Preta – entre em ação.

    Como se não bastasse, lideranças políticas fincadas no tão vilipendiado Planalto Central também comentaram a tragédia ocorrida no Rio. Presidente do Senado, o maranhense José Sarney (PMDB) considerou a tragédia um ato de terrorismo, não sem antes afirmar que esse tipo de crime não faz parte da cultura do brasileiro. Sarney, acadêmico e homem supostamente letrado que é, deveria saber a diferença entre terrorista e alguém que é tomado por um transtorno comportamental. Diferença essa que não atenua o manto criminoso que recobriu a ação. Se o presidente do Senado Federal deseja ir além do estrito significado do vernáculo terrorismo, que usemos como exemplo a miséria que impera no Maranhão, o segundo mais pobre estado brasileiro, marca indelével que emoldura as cinco décadas de domínio político do clã oriundo da Praia do Calhau.

    Como nem tudo é perfeito, a presidente Dilma Rousseff, entre lágrimas, também tropeçou no discurso ao comentar o crime ocorrido em Realengo. Diante de uma claque atenta e genuflexa, Dilma disse que “não era característica do país ocorrer este tipo de crime”. A prática criminosa não pode ser característica de uma nação, mas, sim, de uma porção não tão grande e doentia da raça humana. O palavrório impensado de Dilma serviu para minimizar as consequências do ocorrido e estocar o povo estadunidense, uma vez que na Terra do Tio de Sam esse tipo de crime ocorre com certa frequência, o que não dá à mandatária brasileira o direito de fazer insinuações maldosas, mesmo que seja para tentar explicar o que o assassino, se vivo ainda estivesse, conseguiria fazê-lo.

    O famoso e notório viés circense do Brasil ganhou reforço extra com a chegada de arlequins ao poder, mas a condição de hospício que o Brasil carrega não pode ser exaltada por discursos descabidos, que encontram eco em boa parte da imprensa brasileira, a qual não se avexa ao exibir uma inequívoca vocação para aplaudir os malucos que dançam.

    Como qualquer brasileiro de bem estou consternado com o que ocorreu no Rio, mas não será a comoção que me tomará a coerência.