Voltas de Saturno, rugas e pregas

    (*) Marli Gonçalves –

    Como agora está bem na moda, lá vou eu marchando em direção a mais uma volta da roda-gigante, mais um upa-upa do bicho da seda, para mais uns trancos do carrinho elétrico. No parque de diversões de nossas vidas, o chicote maluco nos açoita. Mas a gente marcha, decidido. Assim marcha, nada, voa, aterrissa e caminha a humanidade e a nossa existência.

    Peguei a crista da onda alta e fui. Embora no meio de uma selva urbana, onde deveria mais é pensar em safári, essa imagem de surfista tem frequentado muito minha cabeça ultimamente. Ficar por ali, por perto, na areia ou dentro da água, só na espreita, de butuca. Olhar o céu, o vento, as condições, formações e informações. Sempre pronta a correr e pegar a chance, deslizar, ver no que vai dar. Até sempre chegar à areia de novo e tentar voltar para mais uma, muitas vezes esfolada e sem qualquer prancha para segurar.

    Mas agora é um novo barato o que está na onda: marchas. Tudo é marcha, marchar, percebeu? Pelas liberdades, pela pamonha, das vagabundas, das boazinhas e boazudas, para Jesus, por Jesus. Da família, dos desconsiderados, a favor disso, contra aquilo. Das mulheres, de homens, de gays, ou do contra. Sempre achei doido o ciclo das modas, que catam palavras e as usam até exauri-las, esvaziá-las, e depois as abandonar, gastas e inertes, sem sentido.

    Já foram passeatas. Paradas. Mobilizações. Agrupamentos. Agora são marchas. Não sei como começou, nem quando vai parar. E temo um pouco essa coisa militar de passos fortes e unidos em bloco, avançando em alguma direção, marchando, fazendo tremer o chão. Sempre me parece agressivo, uma coisa de campo de batalha, de confronto. A primeira vez que ouvi falar de uma marcha foi a tal dos 100 mil dos anos 60; deu no que deu.

    Mas eu era pequenina e não sabia nada. Só sentia a tensão, a censura quando me mandavam não falar de certas coisas fora de casa. Sempre tive olhos grandes, quase maiores que a cara, que piscavam, sempre captando, lado a lado dos ouvidos. Assim fui indo, ouvindo os tiros da guerra contra as guerrilhas urbanas. Às vezes via – como vi o corpo de Marighela, morto a poucos metros de onde morava. Ou só sabia, com amigos que jamais veria novamente. Ouvia o rock e, em paralelo, as palavras de ordem que ainda hoje se mantêm permeando o tempo – o povo unido, jamais será vencido. É um. É dois. Quatro, cinco, mil. Vamos lutar pelo futuro do Brasil. Foi dessa massa que saiu o bolinho que sou – soprando velas ano após ano no país que ainda está lá no Futuro. Um misto quente de marxismo, ideais, rebeldias, feminismo, jornalismo, ao som de uma trilha sonora digna de uma Rádio Rock, de Kiss FM.

    Trancos e barrancos depois, venci desafios, superei medos, pus o pé no chão e fui. Ao mesmo tempo, também perdi disputas, ganhei muitos novos medos, e em vários momentos fiquei parada, estancada, aguentando. Lutei contra a morte diretamente, a minha, que venci pelo menos até agora; perdi a de minha mãe, a de muitos amigos. Assim, envelheço na cidade como diz a música de Scandurra. Mais um ano que se passa/ Mais um ano sem você/Já não tenho a mesma idade/ Envelheço na cidade/Essa vida é jogo rápido/Para mim ou pra você/Mais um ano que se passa/Eu não sei o que fazer…

    Sou do século passado. Do ano bom e marcante de 1958. 53 outros se passaram e, no meio deles, quando momentos e fatos me obrigaram a amadurecer, hoje lembro perfeitamente de um dia lá atrás no qual pensei onde estaria hoje, o dobro, depois. Estou no mesmo lugar enquanto, como diriam os astrólogos, por duas vezes Saturno desfilou seus anéis, dois ciclos quase que completos, em seu vagaroso andar de planeta lento. Esse, Saturno, que não marcha; se arrasta.

    Não precisa ser místico para entender. Nos vinte e pouco tomamos um “boeing” na cabeça; nos cinquentinha começamos a procurar os motivos para tudo que aconteceu, onde nossos pneuzinhos passaram, o que nos marcou a face, os dentes perdidos, as dores que lamentamos. E depois, creio, os setentinha, liberadores, como ouvi de Ney Matogrosso. “Eu posso tudo agora”, ele disse, em uma síntese de liberdade invejável de falar, fazer e acontecer. De “estar podendo”. Quem dera. Quero assim também.

    Chego lá. Sem marchas nupciais. Em marcha atlética, que atrás vem gente. E que Deus me ajude!

    São Paulo, olho no contador de quilômetros rodados, 2011

    (*) Marli Gonçalves é jornalista. Como o vinho. Como o whisky. Como a prática, a sabedoria, os calos, as rugas e, sim, como algumas pregas. As de minha língua e do meu pensamento estão se soltando cada dia mais. Pensou o quê?

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