Machado de Assis, Orlando Silva e a peladona da Zona Sul

    (*) Ucho Haddad –

    Por certo muitos devem estar pensando que se trata de um escândalo de traição envolvendo alguém importante nessa barafunda chamada Brasil, um triângulo amoroso daqueles de aguçar o imaginário ardente de parte da população, mas nem de longe isso é verdade. Interrompo a maldosa conjectura coletiva para seguir no rumo do esclarecimento dos fatos.

    Com as denúncias de corrupção pululando aos quatro cantos, muitos são os leitores e amigos que me perguntam sobre o que é possível fazer para acabar com um dos grandes males da humanidade. Como sempre, respondo que é muito importante ter calma de sobra ao analisar o assunto. Corrupção é algo parecido com aquela dor de cabeça que lhe atormenta há mais de uma década, mas que nunca subiu de nível. Quando isso acontecer, ou seja, a dor de cabeça tornar-se mais intensa, o melhor é procurar um médico com urgência, pois algo grave pode acontecer a qualquer momento. Ainda abusando da analogia corporal, corrupção é aquele joanete que “fala” mais alto como prenúncio de chuva. Deixando de lado as analogias explicativas, a corrupção é algo tumoral que, se for extirpado a fórceps do corpo do Estado, de chofre decretará sua morte [do Estado]. E isso não é privilégio (sic) do Brasil, mas de qualquer nação ao redor do planeta, pois o aparelho estatal, seja ele qual for, se confunde com a corrupção e vice-versa.

    Certa feita, durante a campanha presidencial de 2002, perguntei a um então candidato se melhor não seria socializar a corrupção, uma vez que ela estava culturalmente incrustada no conceito do Estado. Por mais absurda que pudesse parecer, a ideia era, como ainda é, distribuir de forma fraternal e isonômica os dividendos da corrupção, já que detê-la é tarefa hercúlea. Qualquer negócio com o Estado, oficial ou não, tem sua parcela obscura e criminosa. Há sempre um alarife, a mando de alguém ou agindo por conta própria, cobrando o que não deveria ser cobrado. Diante disso, nada mais justo do que criar-se uma tabela da corrupção, para que os incorrigíveis corruptores passassem a materializar a propina em construção de casas populares, escolas, hospitais e outros quetais que o quinhão dos excluídos tanto carece e suplica.

    Como era de se esperar de um hipócrita que almeja voos altos nos céus da política, sempre tendo a fraude ao eleitor como pano de fundo, a resposta do meu interrogado, com direito a nariz torcido, foi negativa. E o fez com veemência, como se ele próprio fosse uma ode à moralidade. Não demorou muito, contundo, para que um assessor desse boquirroto paladino da moralidade fosse flagrado no escândalo que ficou nacionalmente conhecido como “Mensalão do PT”, algo que os petistas descarados (a maioria o é) juram de pés juntos que não aconteceu.

    Voltando no tempo, mais precisamente ao período em que o petista José Dirceu era deputado federal e engrossava as fileiras de uma oposição mentirosa e dada às fanfarrices, o verdadeiro pensamento político dos atuais donos do poder subiu à tribuna da Câmara para ofertar a senha do desmascaramento. À época, em discussão estava, no plenário da Câmara dos Deputados, a cassação do mandato de Ricardo Fiúza, filiado ao capítulo pernambucano do finado PFL e acusado de integrar o imbróglio batizado de “Anões do Orçamento”. Exalando sua conhecida soberba de camelô, José Dirceu disse que a subtração de um mandato parlamentar exigia apenas e tão somente evidências, não provas. Pois bem, Fiúza escapou ileso da peçonha petista, mas anos mais tarde, com evidências aos bolhões, o mesmo José Dirceu tropeçou nas provas que, segundo o Ministério Público Federal, o apontam como o chefe de quarenta saltimbancos que surrupiaram o dinheiro do contribuinte na esteira do “mensalão”.

    Deixando de lado algumas figuras canhestras da política nacional, até porque não merecem o suor do meu tutano, alço à mira a escandalosa lufada de denúncias que ora faz chacoalhar o Ministério do Esporte. A exemplo da presidente Dilma Rousseff, sou devoto incorrigível da apresentação de provas incontestáveis para se condenar, como também defendo de forma ferrenha o preceito constitucional da presunção da inocência. Ou seja, todos passam ao largo da culpa até prova em contrário e definitiva. Porém, é mais do que necessário mandar para longe a avalanche de suspeitas que flana sobre a Esplanada dos Ministérios. O mais adequado nesse episódio de suposto desvio de dinheiro do Programa Segundo Tempo seria afastar temporariamente o ministro, até que as investigações apontassem a verdade. Vale lembrar que atitude semelhante – corajosa e coerente, é verdade – tomou o então presidente Itamar Franco (que Deus o tenha), que diante de denúncias preferiu preservar o dileto amigo de longos anos, Henrique Hargreaves, alvo da maledicência de quem não ousou apresentar provas. Nada contra Hargreaves, o assessor de Itamar voltou ao cargo que ocupava à época.

    O leitor deve estar se perguntando em qual ponto do texto entram Machado de Assis, Orlando Silva e a peladona da Zona Sul. Seguindo a receita macabra de “Jack, o Estripador”, vamos por partes, sempre parcimoniosamente. Se por um lado as acusações contra Orlando Silva ressuscitam a moribunda oposição ao Palácio do Planalto, por outro elas provocam uma pasmaceira contemplativa na opinião pública. Muitos são os que comentam o assunto aqui e acolá, mas raros são os que têm coragem e iniciativa para tentar mudar o criminoso status quo. É a tal da dor de cabeça teimosa e persistente a que me referi acima. Enquanto isso, a corrupção grassa nos bastidores como uma serpente que exibe seu bailado viperino, fora do cesto, ao primeiro trinado de seu encantador. Afinal, como sempre digo, escrevo e repito, política é um negócio milionário e promissor. E nessa toada não pode parar. Deveria, mas não para.

    Agora parto para a peladona da Zona Sul da capital paulista. Antes disso quero lembrar que nos últimos dias, nas conversas de botequim e em mensagens eletrônicas disparadas ao bel prazer, muito se falou sobre a imobilidade preguiçosa do brasileiro diante da necessidade de se protestar contra a corrupção, não sem antes exaltar sua contínua e invejável disposição para participar de marchas e passeatas que empunham a cangalha da fé e a flâmula do arco-íris sexual. Pois bem, registros à parte, fui pego de surpreso no começo da tarde de sábado, 22 de outubro, ao circular por uma movimentada rua da Zona Sul da Pauliceia Desvairada. Na companhia da minha respeitosa mãe, que completava mais um ano de vida e cuja honra muitos teimam em achincalhar gratuitamente, deparei-me com uma mulher que caminhava pela rua como veio ao mundo. Sol a pino, a tal herdeira de Eva, aquela do paraíso bíblico, estava completamente nua e muito à vontade. Senhora de si, caminhava com passos firmes e marcados, como se estivesse em traje de gala.

    A primeira resposta que veio à cabeça, sem que qualquer pergunta tivesse sido feita, é que a mulher é tresloucada – “fora da casinha”, como aos descompensados sempre se refere minha amiga e acupunturista Laura Coelho –, mas de louca, na minha reflexiva opinião, a peladona nada tem. Ela simplesmente fugiu dos padrões instituídos pela sociedade como sendo corretos e adequados. Qual não foi minha surpresa quando percebi a reação dos populares, trabalhadores e clientes que estavam em dezenas de estabelecimentos comerciais fincados naquela via. Todos saíram à porta para ver o desfile triunfal da desnuda, como se outros escândalos não acontecessem no Brasil, que há mais de cinco séculos repousa inquieto no berço esplêndido da corrupção.

    Partamos do princípio, caro e dileto leitor, que a ousada nua tem de fato alguns parafusos a menos e outros tantos fora do lugar. De tal modo, ela era, naquele momento, merecedora de ajuda, não de galhofas, comentários maldosos e imagens registradas por celulares. No contraponto, consideremos, então, a possibilidade de a “sem roupa” de um badalado bairro paulistano ser uma pessoa sã, com suas faculdades mentais aprumadas. Ela pode ter decidido enfrentar o calor ao seu modo ou, quiçá, protestar contra algo que lhe incomoda. O que a peladona a que me refiro roubou dos transeuntes naquele começo de tarde sabático? Nada, absolutamente nada. Na verdade, proporcionou, sim, alguns minutos de descontração àqueles que são roubados por um punhado de malandros engravatados, mas que diante desse surrupio contínuo e sistemático permanecem impávidos e colossais. Em outras palavras, roubar o nosso suado dinheiro, tudo bem, mas gente sem roupa na rua, jamais.

    Por fim chegou a vez de Machado de Assis, esse mestre verde-louro das letras, que entra no enredo apenas porque em uma de suas derradeiras obras, “Esaú e Jacó”, emoldurou de maneira magistral a boca de um personagem com comentários que possuem validade eterna se contemplados a partir da seara da corrupção que borra a política brasileira.

    “Conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Suponha um déspota, uma corte, uma mensagem. A corte discute a mensagem, a mensagem canoniza o déspota. Cada cortesão toma a si definir uma das virtudes do déspota, a mansidão, a piedade, a justiça, a modéstia… Chega a vez da grandeza da alma; chega também a notícia de que o déspota morreu de apoplexia, que um cidadão assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do trono”, escreveu o mestre Machado de Assis.

    A corrupção, que diuturnamente impõe apoplexias à dignidade do cidadão, é déspota convicta e contumaz. A mulher que roubou a atenção alheia, ao circular sem vestes por uma rua da maior cidade brasileira, é a deusa do imprevisto, pois fez da sua nudez uma homenagem à liberdade.

    Já Orlando Silva, o acusado da vez, deveria mergulhar na obra de Machado de Assis. Até porque esse gênio, mestre e fonte de inspiração, a quem reverenciarei até o último dos meus dias, certa vez dedicou a um dos seus personagens a frase “um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero”. Tivesse sido alfaiate dos bons, ao invés de escriba com todas as láureas, Machado de Assis teria feito um terno sob medida para Orlando Silva.