Hebe tinha de sobra o que falta a muita gente

    (*) Ucho Haddad –

    Escrever sobre Hebe Camargo é algo desnecessário, pois a trajetória da diva da televisão brasileira fala por si só. E não é o meu objetivo repetir o que o País todo já sabe. Por isso decidi destacar duas de suas tantas virtudes, as quais deveriam prefaciar a cartilha de vida da extensa maioria: a alegria e a coerência.

    Arrancar uma gargalhada de Hebe era mais fácil do que tomar um pirulito de qualquer criança dormindo. Por outro lado, Hebe, quando necessário, tinha um discurso afiado no rebolo da coerência e do destemor. Falava o que vinha à cabeça, sem ofender o interlocutor. Até porque, crítica é uma coisa e ofensa é outra. Eis um dos segredos da existência da “loiruda”. Mas a alegria de Hebe não estava nos lábios, mas no pensamento, na consciência, no seu interior, no seu todo. O que faz uma enorme diferença, pois sobram no planeta pessoas fingindo que são felizes. Ser feliz não é rir à toa ou exibir um sorriso constante e mentiroso entre os lábios, mas estar com a alma simultaneamente em paz e em festa. É rir da coisa mais simples e possivelmente absurda. É rir de si mesmo.

    Esse traço da personalidade de Hebe Camargo falta a muitas pessoas, que imbuídas de ousadia destemperada creem que destilar o próprio pensamento se traduz em humilhação e ofensa ao próximo. Pior, algumas dessas pessoas, que se dizem justas e verdadeiras, se especializaram em destilar impropérios nos bastidores, numa prova inconteste de que covardia é o seu melhor. Fazem isso como se fosse a mais correta das atitudes, não sem antes colocar no pedestal da verdade máxima o que se sabe ser uma mentira deslavada.

    Sem mandar recados, Hebe dizia o que pensava a qualquer um, mas o fazia com um brilhantismo que chegava a ofuscar suas sempre reluzentes joias. É exatamente isso que muita gente não sabe fazer. Ordenar o pensamento e falar de maneira elegante, sem ofensas, pautando o próprio discurso em cima da coerência e da verdade. Nos dias atuais, a tônica é atropelar os discordantes, fingindo ser tal atitude a mais correta do universo, uma dádiva celestial. Há quem faça isso na condição de injustiçado e pegando carona na palavra de Deus. Dizem, pois, que o Senhor saberá fazer justiça na hora certa. Tomara, pois assim creio.

    Discordar é direito de qualquer um, desde que a discordância seja justificada com fatos, não com factóides esculpidos às pressas no ralo da consciência. A justificativa não precisa obrigatoriamente ser vociferada, mas que ao menos se instale no íntimo daquele que está acostumado ao discurso barato e descontrolado. Porém, justeza não é uma reles mercadoria que encontramos naquela venda mequetrefe da esquina, muito menos em empoadas joalherias fincadas aqui e acolá. Justeza é privilégio de uma minoria, é um dos essenciais ingredientes do estado de espírito, é o que nos da leveza. Hebe foi justa e leve, o que é invejável.

    Disse certa vez o genial Honoré de Balzac: “A liberdade de escolha é um direito de todos, mas só alguns a exercem com elegância”.

    Como sempre escrevo, digo e não canso de repetir, elegância e coerência são questões cromossômicas. Ou você é gerado com esses importantes traços de personalidade, ou nada feito. Envergar uma roupa da moda, por exemplo, não é sinônimo de elegância, principalmente se a essência do indivíduo é marcada por descomunal cafonice de caráter. De igual modo a coerência não desperta no vácuo de uma frase politicamente correta, pinçada em um desses enfadonhos livros de auto-ajuda ou ouvida nesses cursinhos caça-níqueis de coaching. Elegância é ser coerente debaixo de uma camiseta branca velha e de um jeans surrado, “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento” (que me permita o baiano Caetano). Coerência é existir à sombra de um pensamento firme e elegante, sem devaneios e rapapés de qualquer espécie. Algo que poucos sabem fazer.

    Hebe era elegante até mesmo longe do seu vasto guarda-roupa e da casamata que abrigava suas joias. Era elegante porque tinha opinião própria e não abria mão da coerência. Era coerente porque se permitia à elegância de aceitar o contraditório, mesmo que ao final se valesse da tréplica. Muitas vezes escolheu o silêncio para não vilipendiar sua elegância.

    Certa feita, o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe disse que “a alegria é a mãe de todas as virtudes”. A Hebe que conheci, nos tempos da saudosa Nair Bello, foi uma das melhores “fulanizações” da afirmação de Goethe. Era alegre de alma e de essência, sem falsos sorrisos ou gargalhadas de encomenda. Era alegre por si, muitas vezes de per si, mas jamais porque precisava dominar o ambiente em que vivia. Até porque, quem usa desse estratagema é refém da própria incompetência. Vernáculo que jamais coube no dicionário daquela que eternizou o inocente “selinho”.

    Hebe morreu em decorrência da fragilidade da própria saúde, mas até no momento do adeus exibia um semblante de felicidade. Na minha hora, quando estiver na horizontal e diante dos amigos, espero poder exalar o perfume da coerência. Afinal, o melhor e mais rico espólio é aquele recheado de legados.